domingo, 26 de outubro de 2008

refúgio meu...

é do deserto que a chuva vem, quando a noite, estando calma, de repente se move num torvelinho de areias vigorosas. são partículas da alma que qualquer vento faz arder, qualquer sopro menor que o outro der, algo ínfimo que se diga na pele ou se assente no lugar do coração. meu amor, que venha a chuva e nos homilie o corpo na devoção que nos antepara. que se abra o refúgio composto apenas pelo lugar que me ocupas e mais nada. que a intimidade se desprenda da chuva e do nada como se viesse do silêncio uma nova fala. que chegue a chuva antiga, acetinada e fresca, pela pele derramada. ânforas guardadas de palavras e murmúrios perigosos caiam sobre nós no delbar da madrugada. a vida é elíptica, o amor é côncavo, a nossa alcova é a concha de uma palavra sublinhada rente ao ouvido. é ouvir-te a voz, entre a cortina de chuva, a contar-me de ti, sabendo-te em mim, a narrar-me o fio dos dias que já foram, como se nos detivéssemos no que nos sobrou para dar e apenas nos ficasse a confidência, o deambular das memórias para as coisas intensas que nos fizeram história. talvez seja chegado o momento da depuração de nós, num extravasamento do que nos falta mostrar, depois de nos nudificarmos apressadamente, como fomos. escuto com atenção os teus momentos, e os meus te guardo. quem quer saber dos meus episódios, a quem interessam os meus primeiros pensamentos, quando cresci? haverá alguém no mundo que acompanhe o fio da fala e as cores que ostento todos os dias? a quem pode importar que eu ainda lembre a boneca de cartão que a minha mãe com dificuldades me comprou e eu estraguei ao lavar? e as meias que episodicamente trazem malhas, os rasgos de luz que o rio me trás, ou de tristeza? tem de haver alguém que nos confie o seu olhar. alguém que nos ombreie a solidão e a vontade de dar. e o diga com a voz coalhada de tremor, ou de paixão, de intima fala, na solidão que dois somam absoluta, exclusiva, total. meu amor, eu quero ouvir-te, quero o inventário dos objectos e das vivências que tens no impulso do sangue, mas sobretudo quero a tua companhia, o discorrer do teu olhar sobre as coisas e sobre a vida e sobre o meu corpo e a minha pele. meu amor, que venha a chuva fazer de nós dois a tempestade, homem e mulher...