sábado, 30 de junho de 2007

crónica da madrugada



"A madrugada é uma ave revestida de luar", começava assim o verso pueril, nascido no limbo do sono e da vigília. Não durmo, entregue à teimosia dos teus olhos, e na escuridão imagino o poema, sem o escrever. "A madrugada é uma asa fria que me prende ao fundo da tua ausência". Levanto-me, esta frase ancorou-me à vigília inadvertidamente. Afinal sempre escrevo o poema.

Abro a presiana e a moldura do quarto recebe em cheio a lua azul alta no céu, e descubro a razão do meu poema. Só não descubro o meu poema no gelo das minhas mãos. Oculto-me quando ela se desoculta, oculto-me por não te ver. Remexo a terra deste jardim que te plantei à beira do quarto. É um lugar agora silenciosamente branco, talvez tapado com panos, como a palavra, remexo a terra e arranco pela raiz tanto poema envenenado, tanto bolbo que não cresceu, tanta flor que nenhuma mão colheu para ir morrer numa jarra qualquer ou na raiva das mãos.

O jardim exala um perfume de lugar abandonado, as flores mantêm-se a poder de laca, nenhum riso ecoa pelas frestas dos caules, dir-se-ia um jardim cerrado e triste. E no entanto, quantas emoções bailam com as palavras, quantas borboletas álacres pelas manhãs, quantas crinas cavalgam as marés, cada flor rasgada na pele pelas voltas do amor... Não, não é um jardim triste, talvez suspenso, como os jardins de Barcelona, ou tapado com os panos brancos das casas fechadas que viveram grandes dramas e preferiram a penumbra doravante...
O quarto emudece com o estrago de pólen no mel esquartejado das palavras. Pequei por palavras que quis tocassem a tua pele. Pequei na tua pele, pequei na pele das palavras e teus fiz os meus pecados. Confesso que pouco mais tenho a despir de ti, depois da pele e do néctar todo que verti. Compomos o amor em diferentes pautas. A minha requer mãos que a rasguem, a amarfanhem, reajam, estalem na pele, libertem incontidas notas de marés e rugidos de um marmoto. Paixão liquida. A tua pauta toca só para ti uma música que compões da superfície das coisas, uma sinfonia rasante de múltiplas vozes, não tuas, de outras tantas vozes iguais à minha.

Não é por isso que deixa de ser madrugada no nosso quarto à beira de um jardim de papel. Pela janela entra uma lua desmesurada e o impulso nocturno da tua pele. Sonho-te porque não me resta mais do que sonhar-te. Planto-te e arranco-te, para que me sangres em seiva ou sangue umas palavras de amor. Mendigo-as de todas as formas que sei, com riso, com loucura, com altivez, com brusquidão, com a mais funda alquimia do meu corpo e da palavra, no fundo de todos os mistérios vou mendigar a tua palavra vestida de sol, terra, árvore, lume, lua, lava, lírio...

Mas reconheço que somos a essência de amar sem cor nem volume, e por isso, por que me falarias com o coração na voz, já que não me falas com a voz no coração? Arrepia-me pensar que fui eu que te fiz assim na loucura dos meus versos. Alongei-me sobre ti, sobre a imagem que do amor te tornaste, até te personificar nele. És o execsso da minha alma, um fervor avulso que coabita com o lume. Cá dentro. Fora de mim és quem fores. Mas não és tu.

E agora, de mãos vazias, atrevo-me a querer-te em palavras, sabendo embora que o verbo não te habita em meu favor, nem as sombras te chamam para o lugar das minhas tílias. O quarto não conhece a tua voz, mas imagina-a macia como pétala fresca, uma voz de ave encantatória, roçando o ouvido no registo embriagado da memória. Gostava de ouvir a tua voz, para que as paredes do quarto a gravassem num eco demorado, a subtrair o peso do silêncio. Gostava. Que a noite viesse e me levasse docemente, que o quarto descobrisse os móveis e as estantes, que os poemas flutuassem como pó e as tuas mãos se enternecessem comigo, por um instante. Então todo o luar do teu gesto seria bastante. Para que tu pudesses ser realmente tu além de mim.