sábado, 30 de junho de 2007

entardecer no mar


Ontem fui deixar-me anoitecer frente ao mar, no maior espreguiçar da tarde que já tive ocasião de presenciar. Eu lenta, sumida numa cadeira contemplativa, eu a desocupar o meu espaço de toda e qualquer latitude, a não ser o desaguar do dia na tépida zona da penumbra. E se foi demorada a descida! O sol persistia em adiar a queda, às vezes o sol requer do dia o tempo bastante para esperar a lua e resiste, resiste, o sol a limar a longitude da atmosfera, eu ébria de luz e também de ti na espera que o mar tomasse o teu azul.
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Era o mar amarrado na baía, um mar doce e salgado ainda rio, eu presa ao lume prateado e atrás de mim um sopé coberto de flores e árvores antigas. Em queda, Palacetes do tempo em que as dinastias vinham a banhos ao Monte Estoril. Muitas palmeiras e um vento que começou a agitar o mundo, um vento de memórias e presságios, o vento que sempre levo comigo, quando te busco no mar alto.
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Havia uma regata a chegar, tantos barcos a abraçar o areal, a praia murada, salpicada de barcos, já pousados e prontos para a próxima etapa. Gostava de ser um deles e saber que o meu destino era amanhecer no mar e entardecer no areal com outros barcos. Uma profusão alegre de liberdade guardada no espaço limitado de um barco. Gente que se fará à vela mar adentro, esperando que o refresso tarde. A terra prende com lianas e raízes de um selva poluta. O mar leva quem sonha, e lava a pele, purifica o sangue que navega por cima de todas as erosões. O mar leva-me e eu vou.
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De repente a tarde cede e a lua surge como um novelo de bruma inexplícita no horizonte, no fundo quase invisível do forte da barra. Gaivotas distraídas buscam as vitualhas do dia, restos que ficaram da invasão dos banhistas. Alheias às coordenadas do tempo e porém atentas ao desfilar da luz, para onde vão as gaivotas pronoitar os sonhos? Não alcanço rochedos com o olhar, suponho que as gaivotas saibam os seus lugares secretos para se esconderem da noite. Que mos contassem, na necessidade imperiosa de me esconder eu mesma de tudo que me resta.
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As gaivotas presas ao alimento último do dia e eu entre o sol e a lua, recordo outra tarde antiga, em que sem te saber um nome e uma cor, já te sabia algures no limite das minhas paixões. O simbolismo veio-me óbvio, a maldição dos astros solitários no céu, o lampejo de luz que se oferecem sumariamente, intemporalmente num tempo restrito. Ela banha-se nos seus últimos raios, ele parece refulgir mais ao vê-la. Não escurece rapidamente, fica uma claridade húmida a pairar sobre a baía.
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A própria noite hesita em mergulhar em negrume o raro sortilégio. Os raios de sol ficam esparsos na atmosfera a iluminar a face redonda e pura da senhora dos céus. Flores pela encosta e palacetes que guardam os segredos que sinto ter vivido em nome de todas as mulheres que morreram devagarinho na baía. Avivam-se os contornos do círculo agora claramente a face da saudade. Conto os destinos idos na contemplação da sua eternidade, enganosa lua que és de todos os amantes e todos colhes na foice da tua impermanência. Se tivesse mãos eternas e expansíveis teria sido o momento de reter longamente as tuas, como se retivesse o marulhar das ondas e da vida. Nesse momento senti-te no cume magnífico que une na mesma cor o mar e o céu. Entre o poente e o nascente, cabia o mar imenso do teu olhar.
Bom Sábado!