domingo, 24 de agosto de 2008

o rio e o leito

pega neste bocado de silêncio
absorve o seu cântico lento
e afaga a noite no seu seio
como o meu coração te afaga
neste momento

vê como até o vento se calou
toda a cidade é um registo mudo
de barulhos urbanos e espaçados
como a sirene aflita que agora passou

talvez consiga ouvir o comboio
como um coração latente
se não mover um só gesto
nem os meus lábios se mexerem
toda a fibra da noite
me pulsará dentro

escrevo-te porque o sentir
se fez penetrante e denso
quando as palavras se cansam

afago o sono e a serena pausa
dos sonhos intensos
porque é aí que vivo
o que não tenho

posso remexer nas cinzas
desta memória que é valsa e verso
posso saltar por sobre o teu silêncio

posso até edificar tudo de novo
palavras lisas, rosas presas no teu corpo
e não usarei o verbo antigo
para te reaver fogoso

do que foi nosso erigi um sacrário
secreto e sumptuoso
de todos os momentos
em que o teu nome me ocupou
a cavidade do ventre

e abro facilmente para mim o nosso mundo
tudo que foi verdadeiro e intenso e hoje é só lume
que de tão forte ardeu sem combustível

mas nunca haverá uma só palavra perdida
no altar das almas extraviadas

prefiro sentir-te no colo calado e quente
imiscuir-me na tua cintura de vento
no teu vibrátil sangue de mouro ardente
sem que uma só palavra volte a riscar o presente
extravasar-me em ti na corrente do silêncio
e deixar que o amor se vá perdendo devagar
no veio da vida que vai passado e esquecendo...

a teu lado a noite parece ter perdido a urbanidade
é apenas uma noite com um homem e uma mulher dentro
juntos como o rio e o leito...

beijo-te