a tarde espalhou-se pelo quarto, morosa e grande, sem uma ponta solta a servir de âncora às palavras. um rio a correr vazio, para qualquer lado e eu parada num ecran que me luzia em branco o retângulo de edição. estiveram lá palavras, combati a fluidez do sangue, ralo, areadao, linfático, armei-o com palavras, molhei as palavras no que sobrou de mim e nada fazia sentido. imaginei-me uma criança a empinar peças de Lego, sem um projecto, sem entusiasmo, apenas porque queria chegar alto. escondi-as, porque pareciam flores de plástico e tu mereces as melhores espécies do meu jardim de antigamente, empenhadas todas para poder sobreviver, empenhadas em troca do vultuoso metal dos sentidos que tenho polido para te brilhar. mas hoje, não sei de onde me vem esta invernia, terás deixado a porta aberta ao sair e agora tudo entra, até o vazio que enche a boca dos peixes ao morrer, até o grito das baleias, o alvoroço dos corvos na pedreira, o pânico das abelhas, quando lhes raspam o mel. agora chegou a noite e o chão acolhe um corpo ferido na sua face íntima. um corpo não é o que o contém, mas o que o adentra, o preenche ou esvazia. podias de vez em quando soltar o sino da velha igreja, assim eu saberia que as trindades te feriam o olhar, na sua insípida cadência entre dois horizontes famintos. na cidade não ouvimos sinos e quando ouvimos, julgamos que foi uma partida dos sentidos, aqui na cidade não há trindades, nem camponeses felizes no júbilo da sua obra acabada, no gozo da cama sempre aberta, na insapiência que assegura a paz de espírito e a crença. sim, a crença, porque aqui na cidade aprendemos logo de manhã a descrer. é tão difícil acreditar que tudo vai correr bem, que alguma coisa ainda está nas nossas mãos, que podemos mudar o percurso do autocarro, a estação, a seta de sentido obrigatório... tenho medo da liberdade que me falta ainda (re) encontrar. assusta-me pensar que também ela me abandonou sem dizer nada, de mão dada com a paixão e a fuga para o amor. até as palavras, como viste, hoje me traíram. uma ressonância nos ouvidos, é o que as palavras são. tão pouco explícitas, tão iguais, como aqueles calhaus da ribeira, redondos e rolados sem um rumo qualquer na dança das águas. tenho medo, meu amor. tudo que tinha de ser se cumpre. sinto-me como chuva e caio intermitente para o alheamento do mundo. agora já sabes. não estou em mim, não moro cá. acabei de perder-me na reentrância das palavras, uma cova funda, mas vazia, eco das eras frondosas em que éramos um bosque que dava rosas rubras.
beijinhos
beijinhos