sábado, 9 de junho de 2007

tílias no parapeito


sabes, esta noite é como um fio de pedras soltas, apanho os bocados do silêncio e comovo-me com o seu som, a palavra assim riscada é magnética, sobrevoa-nos. é uma fita infinita de sons suspensos numa espécie de lugar de sombras, para onde se retira a poeira dos nossos dedos. acendi as estrelas no círculo da floresta, para que entres e te recolhas por dentro, a fogueira lavra devagar, sem pressa de se incinerar como os corpos que dia a dia alimentamos.
.
sabes, o quarto parece mais profundo desde que a noite se adiantou. meço-o com um elástico tenso nas suas pontas entre cada segundo. lugar de sombras e de espanto, o quarto prende a voz que o decorou em cada momento de encontro. uma carpete infinita enrola os nossos passos no mesmo lugar, andamos pela sala como peregrinos na via-láctea do coração, artéria a artéria, já abrimos todas para que tudo nos circulasse de oxigénio novo. agora o quarto acoita os astros e nós deixámos tanta estrela por prevenir...
.
escuta, as sombras das tílias pousam no parapeito e abanam ao ligeiro vento da despedida. não temas, o quarto permanece até ao fim do olhar, será assim que nos despediremos da branca luz da memória, num quarto com o cheiro das tílias pousadas no parapeito da vida.
.
ouve o que te digo, o quarto tem as paredes bastantes para todas as projecções de nós e do mundo. cabe tudo na verdade que nos ocultamos. não temas, de cada vez que nos refugiarmos no quarto, não ouviremos apenas os sons dos nossos passos. a pele reacender-se-á germinada e verde nalgum musgo antigo, que julgávamos seco.
.
mordemos a caliça, ouvimos as arestas imperfeitas, arredondam-se consoantes tribais, nos teus ouvidos, a noite, a dissonância, o nó de seda em volta da garganta, eu sei, eu sei podemos despertar numa folha cheia de sons quânticos, o nosso leito âmago, gostava de ser o teu rio e que me navegasses pelo fundo nas ondas do pranto.
.
escuta, só falta isto, liberta o vento que nos prende os cabelos, as horas esquecidas despenteadas, lívidas como cadáveres, deixemos aberto o quarto de heras trepadeiras, teias renitentes, no algodão que nos envolve os corpos, deixa as faias falarem por nós quando chegar o momento e o quarto for de algodão perfeito na luz branca da memória que, suspensa, lembra tílias a acenar no parapeito... esta noite é a manhã perfeita dos nossos sinuosos desejos, alva e limpa, infinitamente veloz e luminosa como a espera do fim do tempo...