A saia é uma onda inesperada, no momento em que lhe abre a porta é a saia que vê, rodada e livre, e só depois o penteado novo, caracóis soltos sobre a face, o sorriso escavando pequenas covas perpendiculares à boca. Disfarça-as pondo-se séria, mas logo o sorriso, como quem pede desculpa de ser como é, ah o rubor da face, os calores intensos pelo corpo. Transparente o andar, a fala e o sorriso. O corpo não mente. Mas não, a onda de calor vem-lhe de dentro, talvez da idade, talvez do lugar e do encontro. Avança a saia pela porta, a onda entra e o sorriso volta, olhos sombrios mas risonhos, os dele muito sérios e frios, pálidos como a neve. Saberiam falar, dizer-se algo por entre o desconforto de terem presença e corpo?
_ Bebes? Sim, algo fresco que lhe retirasse o intenso calor do corpo, ou arrebatasse o rubor, a insegurança do lugar novo. À volta da saia, o mundo desconhecido a entrar pelo corpo a novidade do outro.
_ Os lugares... começa por dizer, os lugares que não conheço deixam-me sempre desconfortável, na impossibilidade de os abarcar e conhecer logo à primeira.
_ E que tem isso, não quero que abarques tudo hoje, quero que vejas devagarinho cada coisa, odeies e ames cada objecto por si e nunca pelo conjunto.
_ Não devo voltar, como sabes...
_ Não sei, não, diz-me tu...
Mas ela não disse o pavor dos lugares cunhados por outras mãos, o medo das paredes a fecharem-se sobre o corpo. Não mostrou a cicatriz que trazia escondida no bolso, casas, divisões, a vida alinhada dos outros, casas e móveis de outros, objectos pendurados de outros, fotos e memórias de outros. Calou a necessidade de preencher o mundo de novo. Abater paredes e divisões. Espaço e palpitações, claustrofobia e calores, a biologia a marcar lugar no seu corpo, uma necessidade de ar suspensa da janela. O cabelo colado à face a tapar a perturbação da cascata azul caindo profundamente sobre ela. Transparente a sala, a íris aprumada, o olhar com tudo tão diferente e novo.
_ Olhas-me assim...
_ Tento entender-te, conheço-te, mas na verdade não sei como és.
_ Então, se não sabes como sou, não me conheces.
_Conheço-te muito por dentro, por fora não te sei, cada reacção tua pode corresponder a mil e uma emoções, das que te sei capaz de sentir.
_ Os gestos traem-nos sempre, mas é preciso que haja uma linguagem comum já construída.
_ Vamos construir tudo desde a raiz da palavra até ao fundo dos gestos. Olhar-te hoje e beber-te devagarinho o fluxo de cada movimento, é bom isso.
_ Não, não me olhes muito. Ruborizo. O teu olhar desmente-me. E sempre pensei que os papéis estariam invertidos.
_ Tu a olhares-me e eu a refugiar-me na sombra?
_ Ou na banalidade, ou no riso, ou na penumbra, sim. Conforme te refugias no silêncio, quando mais queres falar-me.
_ Era o que devíamos fazer agora, calarmo-nos, porque o silêncio hoje não é para mais te falar, mas para mais te ver. A fala nos olhos é do amor o instrumento mais preciso.
_ Falas de amor? Tu?
_ Teoricamente, claro, assim será.
Pois, o amor escondido, o amor debaixo do braço, o amor envergonhado, inadmissível amor, e os calores a voltarem, ar a mais nos pulmões, palavras penduradas na sala, o lugar do outro, gotejante lugar onde o gelo escorre dos olhos sem se saber de onde vem. Escapar dali, escapar ao amor que não é amor, escapar do amor improvável como de um elevador preso na tarde.
_ Vou-me embora, não sei o que faço aqui!
_ Espera.
E a mão ousa atravessar o vazio até ao toque, espera, a sua mão na dela, prende-a com força, tanta força, a vontade de gritar e de de pedir a mão de volta, ou de pedir que aperte mais, espera, disse ele, e o mundo a parar enquanto a mão que aperta lhe diz, fica comigo aqui e agora, espera. E ela nua, rasgada em véus de desejo os olhos enfim rarefeitos e ternos, perdidos no fundo azul da janela onde o amor assoma, sério e sereno. Espera.
_ Espero.
E, no abraço das paredes e dos muros contra os corpos, a sala valsa e prende a seda do encontro, ombro a ombro a sala aberta, larga e distante, os corpos a caberem na sala, as paredes novas luzidias, flores de sal sobre as faces, folhas adejam em volta dos corpos e os passos presos entre pernas o amor nasce, já não tenho medo deste lugar, este lugar és tu, só agora me abriste as portas. Posso entrar? Entra. E os lábios que enfim contam o que tudo já sabiam, confirmado mel em busca da pele e da poesia. Já te conhecia assim. Eu também, só não sabia... que os lugares novos do teu corpo não tinham muralhas nem outros destroços.
Não têm, não. Deixa-me ser assim agora novo. E sempre? Sempre é tão pouco...