quarta-feira, 23 de maio de 2007

entre telas

... a tela vermelha de um corpo na zona proscrita da noite. fico no enquadramento da tela sem entrar, não sei rasgar as piceladas cegas, o traço autista. não quero roçar o teu mundo como um corpo, embora queira ser o corpo que roça a tua alma. não quero estar dentro e fora, sobretudo quando estando dentro, na verdade é fora que estou. na orla obscura da casa a clara zona de escuro breu, um túnel ao fundo e aí estás tu, mas a tela tem a área limitada pela extensão da mão que cria, não há lugar para mais frestas e eu não sei ser estreita. a noite por si mesma não conta, a noite veste-se com a tua pele e insiste no habitáculo, mas não é a noite que importa, e sim o acto de a habitar demoradamente na tela do outro. eu não sou a noite, insisto, estou aqui sentada com o sono a tapar-me a face e o rubor e não sei ainda onde se encontra o lado certo do amor. talvez tenhamos de despir todas as noites as peles que emprestamos sem pedir, para que a nossa, de tão vulnerável, ganhe enfim a verdadeira essência de existir. explico-me melhor, na impossível incondicionalidade do amor, a solidão aceite e emoldurada como fuga para dentro de nós é o elixir da profunda paz vivida na região última do tempo. mas que sei eu do corpo senão a razão íntima da nossa condição mortal? o corpo e a morte, a vida e a fuga para os lugares aprazíveis da nossa paisagem interior, como esta chuva que começou a cair enquanto escrevo e me trouxe não a chuva, mas as sensações que rodeiam o estado de chuva, a chuva interior, o pluvioso rio. mais bela do que a chuva é a sua evocação. mais belo do que amar é viver na sua sombra secreta e só, o rio alaga tudo em nosso redor, nada nos alaga a nós.