segunda-feira, 21 de maio de 2007

memórias crepitantes


chagados a casa eu tirava a saia de poemas e as maçãs que trazia no olhar. e tu mordiscavas os poemas antes de os lançares no fogo, como achas, eu quero é o teu corpo sob a saia, dizias, e as palavras caíam como folhas secas cheias de memória inenarrável, crepitando no lar aceso. o quarto abraçava-nos entre frestas e correntes de ar, secreto sopro amainado na fonética do beijo, as línguas irreverentes a pronunciar o desejo. sim, chegados a casa resumiamos o tempo.

além era uma falésia, recordo o seu olhar lento e estava lá como uma sombra à nossa frente, pronta a despenhar-nos pelo risco do encontro. sabíamos enganar a esfinge da distância e a cidade antiga podia ser um deserto moderno, com palmeiras de plástico e casinos nas virilhas de neon. iludíamos também a memória, tu julgavas-te um velho príncipe siberiano, eu ainda tinha as rendas de cortesã e fazia versos de alcova.

eram horas suspensas na falésia, talvez a casa voasse enfim por breves instantes e o quarto se movesse com asas de gigante, para nos levar ainda mais longe no labirinto arquétipo. mas nós nada desejávamos para além do corpo, o vício da pele prendia-nos na cela entre as longas pernas da tarde e só na pele respirávamos um pouco de identidade, eu sou o teu olhar, tu és o meu braço, a tua mão é o meu rosto. um no prolongamento do outro, um alto zimbório erecto no cimo da casa e nós no centro do pátio mouro entre coxins de alva madrugada.

não sei quando foi que misturámos tanta coisa na mesma fala, o risco na garganta e nós na zona vermelha do entendimento, só a tua pele na minha, os lábios sumarentos, mel macio no peito, beijos loquazes e derradeiros, finitos na sua demência, línguas e lugares do corpo lambuzados de desejo e as ancas, as ancas como enfusas de matar a sede.

o risco de perder a bússula no corpo vasto de dunas e refúgios, o risco de emergir num tempo novo e puro, para nunca mais voltar ao lado urbanizado da existência. quando nos isolávamos assim do mundo, eu não era nada sem as tuas mãos, o teu calor e o teu refúgio e tu, no meu mundo confuso, de terceira dimensão, para além do principado ardente dos sentidos, tu, eras-me tudo.