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sou como Gaia a mãe silenciosa
cuido a minha pele agreste e olorosa
ergo-me em rochas, rochedos e fragas
tenho luas e marés e amores maiores
agito ventos e mares se não me amares - varro validamente as montanhas do cume até ao sopé só para te achar
lanço granizo e neve se o fogo me consome
desato tempestades e febres tufões e ciclones, para arrumar o meu sistema afectivo se me foges
chovo candentes palavras reguladoras da pele
se a minha ecologia fica em perigo
por falta do teu suor e tuas flores
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sou como Gaia feita de placas sobrepostas
camadas do mundo real que desenho no deserto
camadas do mundo urbano que me polui os dias
me aprisiona as noites e as tardes
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enfeito-me de luz com a paixão, posso ser
relâmpago ou trovão, ou brisa leve
se te falo na caverna apetecida do teu peito
tenho a crosta dura de quem recebe golpes
e apara meteoros e meteoritos que agridem
sem se ouvir sequer um grito
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sou o abalo, o sismo, os lábios em crosta virgens
a serra firme, as florestas tropicais e as estepes
e se as minhas placas se entrechocam e se mexem
se o teu corpo me toca e me investe
realidade e ficção são um vulcão que tudo leva
e a lava escorre na incandescência das palavras
até o lume se fazer neve
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sou como Gaia, no seu processo de verdade
sem esse ciclo de explosões e calamidades
sem a chuva ácida e a chuva das monções
sem a candura da palavra,
amar-te seria uma mera ruga rasgada
na superfície rasa da minha pele tal como,
sem o sal evaporado, Gaia seria só magma
o vazio, a esterilidade, o nada...