terça-feira, 10 de abril de 2007

espírito da dança


Tão tarde e a noite ainda dança, e eu não sei morrer sentada, a morte apanhar-me-á um dia talvez descalça a dançar por dentro uma qualquer valsa, coisa pueril esta de não ser capaz de calar a dança. Era menina e já dançava com todos os músculos do corpo, devia ter seguido uma carreira de dança, um doutoramento em dança, qualquer uma, o corpo a exprimir o que vai na alma, o corpo fala, acena, incendeia, expele, expulsa, cansa. Chinesa a subtil dança dos segredos, oriental e mimética menos solta que a indiana, mas sempre o corpo, a dança dos deuses em cópula profunda, o fogo do santo ofício espanhol e sempre o corpo aceso, o cavalgar desenfreado dos touros na arena e as palmas cegas das ciganas, ah, e a sul-americana feérica, histérica e galvânica, sempre o corpo em haste, talvez até a animalidade tão oposta da africana e a sensualidade de todas elas, sim, em vez da voz seria o corpo, em vez da escrita seria a dança. O corpo no inverso da voz, esta que é pálida e imatura e tímida, seria o corpo a fala, e o lume a arder na pele sem incendiar as palavras. Sabia-me bem ser o espírito da dança, dançar rasa de água, dançar de cisne num lago de prata, ter as asas doridas a encenar o canto, mas dançar como um círio aceso, ser corpo moreno a arder num deserto azul, ser ceifada na paisagem de um canto alentejano, dulcificar o corpo dentro de uma túnica chinesa e amar, amar como o vento ama o entardecer quando os rouxinóis partem, dançar na praia, a ponta da saia a esvoaçar, os pés em sal e leves, leves asas no olhar. Em vez da escrita a dança. Um ritual de magia, um corpo conturbado negro por dentro, possuído, incubado, um frémito lunar no ritmo endoidecido, parar, retomar a dança, exaurir os demónios e pronto. Em vez da voz o corpo. Tão tarde e eu pela casa sem saber que dança me prende hoje à noite, este sonho encalhado no poente, não sei que voz me prende que me solta nesta dança das palavras ardentes. É tão tarde para dançar no soalho adormecido, talvez amanhã possa dançar à beira do mundo, o meu andar amanhã se calhar ainda ondeia e eu caminho urbanamente num rouco hip-hop, a caminho da rotina que me coze por dentro. Talvez em sonhos ainda hoje me dance até ao pontilhar da madrugada, um som alourado de jazz finíssimo vindo do fundo de umas termas da moda eu jóias e marfim no sorriso, eu maviosamente presa num recinto de dança, até o sol transbordar no horizonte, até umas sólidas mãos me desfazerem a trança do sono, até... encontrar um deserto azul e um palácio de jade aberto para as libações matinais da ternura e que a voz me volte em breve.
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Boa noite. Sonhos de luar.