tanto silêncio na tapada, e a noite transpirada e tensa, tenho o sangue espesso dos miosótis e a carne humedecida das árvores maduras e há uma tempestade tropical algures na aorta, quando o sono veleja pelos membros sem parar nos olhos. coso-me contra a cama, encerro as zonas íntimas da fala, afogando todas as palavras que acodem à boca, como pequenos arbustos de sentido. são ideias pequeninas de versos humílimos e gigantes na sua perfeita eloquência, imagens que pintam a realidade invisível das coisas, a vida oculta dos objectos, e seríam póstumas de si mesmas se nao ficassem para trás, na fobia do encerramento geral do corpo e do pensamento. dormir. deslizar no abraço da noite, esse contentamento do cérebro, o sono a fazer amor com o cérebro e o sonho a escorrer como sémem de rosas.
inútil esforço o meu. chamas-me poderosamente, é profundo o som do teu apelo, e eu quero ir, mas não posso abandonar-me numa cama ensopada a meio de uma noite sem tréguas, fico até ao chamamento da chuva, que já esperava. e ela veio esmagar o silêncio da urbanização com o ruído enurdecerdor de uma cascata magnífica. foi então que percebi que esta é daquelas noites em que é imperioso falar de amor. falar-te.
dizer-te que a minha vida corre sem ti em todos os sentidos, que nada em mim morria se deixasses de existir, e que nem sequer morro à beira de não te poder tocar. e porém tudo em mim corre para ti, tudo em mim vive mais por existires e, sim, vivo à beira do teu toque, nos arredores da tua pele, nas cercanias do teu corpo. morte aquela que me vaticinas, morte ou flor, dizes e eu proclamo flor, sou mais forte que a minha morte lenta, preparo secretamente a morte única, a morte que será incisiva e cirúrgica, num só ímpeto. odeio gente que apodrece nas suas próprias rendições, gota a gota de sangue que cede e se mumifica em existência de basalto ou pedra granítica. não, não te serei a piedosa busca, o lamentoso olhar que o teu nunca me saberá, porque a minha morte será ascendente como o inverso de uma cascata. ou como esta chuva brusca e negra que logo se foi, deixando-me de novo a sós contigo e com a noite. gosto da chuva que fala de amor e chama ao amor. não gosto que me confundas com a morte quando me vês a dançar pelos corredores da vida, onde sou ainda tão cedo e tão seguramente dia que recuso fazer contigo qualquer pacto de fuga que me alinhe numa prateleira vazia. ah, meu amor, como me caminhas sem te deteres para me falar, afinal a voz que me cobre o corpo é transparente no seu palato dócil, nada que te diga é arguto a ponto de rasgar o teu mundo... e nesta caminhada juntos apenas a noite nos ondeia, de longe, para o seu submerso abraço. a noite que nos funde no seu perfume, a noite leve, louca e breve, mas onde somos o centro nevrálgico da ausência. o primeiro comboio da manhã já nos atravessou, daqui a nada o despertador a tocar, julgando surpreender alguém, o sol a banhar as poças da manhã, miríades de lagos brilhantes, cidades miragem, sol e saudade, carros e pessoas, a esperança a bailar nos olhares, porque é outra vez manhã e a camisa lavada apagou a noite branca. e tudo será como sempre foi, as nuvens serão as mesmas, mas as suas formas estarão unidas numa nuvem maior, aquela que nos conjuga como compostos da água, substância da vida e do amor. talvez pudessemos partilhar a chávena sem café, ou o café sem a chávena, já vais?, bom dia de trabalho e até logo, meu amor, talvez o corpo cindido, o perfume a trepar pelos tímpanos e a voz flor, até logo, espera-me acordado, meu amor. talvez até tu. mas eclode-me uma frase madrinha daquelas lapidarmente apelativas, próprias de um fim de noite conciliante, e que quero dançar contigo no empedrado da manhã: amemos assazmente o amor que temos hoje e agora, o amor vivo no corpo, sentado no olhar, o amor que tanto é e em nossos dias presentes sem pressa de ficar nos ancora... amemos o amor falando o que o amor diz, e muito, mas ah, as noites dentro das palavras, e as palavras fora da noite e noite afora!