quinta-feira, 5 de abril de 2007

catalogar os dias





gostava de arrumar o dia na sua prateleira exacta, um dia desprevenido em que o tempo me ultrapassou numa curva qualquer dos minutos ou das horas. seria possível medir a força dos dias, com uma catalogação criteriosa, cada dia numa pasta, cada pasta contendo dias felizes, e dias assim assim, ou dias horríveis. empoeiradas as pastas dos dias horríveis, jamais seriam abertas, talvez no dia do juízo final viessem à tona da água, na barca despenhada do rio Letes. as outras seriam encadernadas em capas de flores e circulavam pela casa como álbuns de família apinhados de sorrisos infantis ao colo dos pais. sobrariam ainda os dias assim-assim que ficavam na parte mais central da estante, ninguém se tinha de esforçar muito para lá chegar, nem sequer estes dias suscitariam a vontade da consulta pois afinal estes seriam os dias de todos os dias, quando o tempo nos doseia prazer e privação, ou simplesmente uma grossa fatia de nada, barrada com quase tudo. pensando bem, sou apologista dos dias assim-assim, gosto de chegar a meio e saber que provei um bocadinho de tudo, que tive o sorriso e a indiferença que me fez apreciar mais aquele outro, que tive a espera e a recompensa, o silêncio e a palavra, o trabalho e o descanso, a obra incumprida e a obra acabada, a fome e a satisfação, o branco e o preto, as malhas da luz e as da escuridão. que o tempo me passou por cima como uma onda inesperad e veloz, sem me derrubar de mim. aliás, de tanto ter dias assim-assim, acho que não sei reconhecer facilmente os outros. dias felizes são aqueles que só arquivamos na pasta mais tarde e que começam por ser dias muito assim-assim, que optámos por optimizar com o nosso insisitente modo de persistência no sorriso. ou então foram dias de revelação, como se um anjo nos tomasse por nossa senhora e nos visitasse com uma novidade maior e assim sagrada. se me perguntarem por um dia feliz, talvez cite o dia em que me nasceram filhos, ou amores, ou segredos, ou esperança. também são dias felizes aqueles em que navego acima de qualquer emoção e não existo por dentro, só tenho mãos e pele e estou embrenhada numa qualquer obra mais importante do que eu. diria que uma paixão faz um dia feliz. pelo jardim, pela vida, por um livro, ou um trabalho, pela beleza, por um dia no mar, a paixão da paixão, a paixão pala ideia de paixão, sim, um dia em que se pensa a paixão pela paixão, pode ser um da feliz. a ilusão costuma produzir dias felizes, a poesia às vezes também. a insónia antecede dias felizes, porque os passamos no limbo da noite em pleno dia. decididamente, esta 4ª feira vai para a pasta dos dias felizes. esqueci-me de dizer que um dia feliz também pode ser aquele em que estivemos vivos, e não espalhámos nem mal nem tristeza à nossa volta, nem sequer em nós alguém o fez. e pronto, para que amanhã fosse um dia feliz, só me faltava agora que viesse o sono!