quinta-feira, 19 de abril de 2007

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a inquietação sobre os ombros, nós que nos sabemos leves como luas e livres como só o vento, levamo-nos a um cais de amarras que não nos consentem soltos. estou aqui e isso é tudo que sei neste momento e ainda sei que se estou aqui é porque abati o o sono e o cansaço para te chegar mais perto, e mais profundamente dentro, onde sei que só chega o sangue. faço muita literatura para te navegar as veias, quando bastaria dizer as palavras com toda a singeleza, eliminando as contradições, resvalando pelas dúvidas, evitando as represas. mas não é assim que raspo os sentimentos para o papel. aparo finamente, recorto e colo, mastigo e emplastro, envernizo e envio. a escrita plástica chega-te pronta a vestir, como saída de uma vitrine de acessórios sem utilidade. mas sou eu que lá estou no meio das tintas e da cola, vês-me claramente no corpo que me escreve, mas não porque eu seja este corpo que me vês, repara que o corpo que me vês é o corpo que resulta da proximidade do teu olhar e só existe porque o teu olhar lhe dá luz e o sabe ler. sem ti nutria a mais visceral das mortes lentas. escrevemo-nos na penumbra e assim, fora o corpo, conhecemos recortes um do outro, sombras brancas e redondas vagamente impressas na confluência das mãos e dos rios e vamos. vamos sem saber do rumo, eu não ajusto as margens do meu rio, ele transborda-me por dentro, extravasa-me o corpo, eu digo, sinto e mitigo a vontade de correr em direcção a ti, embora às vezes me pareça que somos mais dois rios paralelos de mãos dadas tanto nas escarpas mais conflituosas como nos calmos, profundos pegos. e não nos depende a escolha do trajecto. sei que não ficamos a meio de um destino já encetado, nunca podemos partir a meio do destino, as mãos indicam claramente a direcção única e nó seguimo-la. é tudo. questionar o destino é morrer à porta de Tebas sem a benção de um verbo verdadeiramente válido que nos assegure a entrada no paraíso projectado pela urbanização da mente. o destino somos nós, o nosso dentro, e as cidades fechadas como Tebas são em si oráculos cujo teor não conhecemos, porque pertencem à geografia que nos circunda a vida. e o impossível de hoje é o possível de amanhã, cumpre-nos nidificar por dentro no entretanto. mas ilusão é palavra que já não uso quando te penso, a tua realidade deu-te um imenso vulto na sombra dos meus dias e a única coisa que pode assustar-me é o nada fazer para abater de Tebas as fortalezas e praças armadas. nunca me assusta o que encontrarei dentro dos muros da cidade, onde me cumpre abrir devagar todas as portas e cancelas, ser a temerosa intrusa, que abraça uma a uma as pedras conquistadas.