nunca tive nada que fosse meu, que tivesse originalmente sido meu, impresso apenas e só com os meus despojos. nada. os objectos eram de outras, em cada uma das vidas que vivi, e foram duas. eu apenas os tomava, como aos homens enlutados que buscavam em
mim a sua vida. a morte morava nos objectos, havia perfumes sagrados nas estantes, interrompidos a meio de um gesto, havia retratos escondidos nos recantos e gavetas e neles morava a morte. eu aceitava tudo que vinha da morte, com a convicção dos vivos: a morte nunca havia de me cerrar os dentes porque dentro de mim morava o amor e o amor à vida. mas a morte havia de enlutar os objectos como se estes tomassem uma forma triste e envelhecida, no pudor de se verem violados no halo da outra que neles existira. e dentro do corpo dos homens também havia dias fúnebres a cumprir, havia as sextas-feiras para o desespero, os domingos para o cemitério e havia as datas, em cada mês havia uma data em que na realidade se comemorava ritualmente a minha morte, nas exéquias póstumas de outra já ocorrida. como uma herança recebi os objectos, os homens e a morte, recebi bocados das suas vidas, num espaço confinado e circular onde a morte era a única saída. com a morte da outra sempre esculpida na face dos objectos e dos corpos, vivi como Rebecca em duas vidas, os homens gostam de vestir-me de luto, e as flores passavam por mim como feridas de morte e não me lembro de receber flores por estar viva. talvez por isso as minhas as mãos me tivessem crescido desmesuradas como caules em busca da clorofila da existência. não, nunca tive nada que não me fosse legado pela morte, até os meus livros vieram de outras mãos, sublinhados com pensamentos que haveriam de ser superiores ao tempo. por vezes colecciono coisas vivas, como plantas e como árvores, crianças e sorrisos de crianças. tolero mas detesto os objectos que já trazem impressos o halo de outros corpos, o sarro de outras vidas. ainda hoje não me sei orientar nos objectos que me ficam, parece que me buscam como a memória piedosa das suas existências dissipadas, guardiã das cinzas de passagem e eu já não lhes sei a procedência. os homens deixei-os um dia à beira da morte, sem saberem para que lado ficava a vida. as pessoas às vezes morreram com outras e não souberam, ninguém se lembrou de lhes dizer, partiste, não permaneças. não, nada tenho de meu que me pertença desde a sua origem, a não ser o ser que sou e os que gerei no meu ventre como vida. e é isso que em mim faz toda a diferença, o desprezo pela posse, o desapego aos objectos, a impermanência dos lugares e das coisas, tanto tenho tido e perdido, tanto é transitoriamente meu, sem nunca o ser, que aprendi a amar o que em mim mais ninguém amou, a força e a diferença de estar viva. mas gosto de pessoas que procuraram uma existência em primeira mão, as que se guardam no seu espaço, aprendi a adimirar-lhes a constância e a ordem, como se cada objecto fosse um bocado de vida sua, em liberdade condicional pelo seu ordeiro mundo e a sua vida não fizesse sentido sem o todo.
