domingo, 5 de dezembro de 2010

detenho-me no vento, no seu assobio agudo, nesta intensa agitação de persianas,  detenho-me nas ruas desertas, na chuva a castigar os vidros, detenho-me no lamento de um piano, solitário eco de mãos persistentes, detenho-me na nostalgia que escorre deste tempo agreste e sinto-me bem no meu refúgio, abrigada, protegida, num casulo suave e quente. sou uma escrevinhadora, relatora de sinais e de presságios que vejo nos sons da natureza, a chuva e o vento, ou nas nuvens, a claridade do céu. e o que hoje vejo é o ferrão aguçado que o mundo crava na realidade dos seres. os tempos cobrem-nos de tristeza, as ruas abrigam quem subitamente desaguou na penúria, os beirais são estreitos, a chuva, o frio, a humilhação, a solidão e a exclusão escavam nos olhos sombras profundas. e eu vejo que as nuvens se carregam, que o temporal se arma, e que o coração diminui, egoísta, impotente, neste canto que resiste, ainda com um sorriso, aquecido por uma espécie de gratidão, face ao que tenho. ainda há esperança, vejo-o. tardará o sol que nos aquece os ossos, por dentro, mas virá. vejo-o nos gestos mais simples, com os quais a humanidade ainda me surpreende. os vizinhos, as crianças, os gestos educados, as palavras adequadas.  há uma organização que resiste. somos muitos. apesar de diminuir a generosa vontade de dar tudo, tudo, mais do que a mão, mais do que a vida, mais do que o sorriso, a esmola, a pele, é preciso continuar a viver e a ver claramente o mundo dos outros.