Starry night over the Rhone
Van Gogh
debaixo da bruma
mesmo no centro da humidade
corre a vida obscura
dentro dos prismas erectos da cidade
que interessa à noite
que as casas se cubram de um negro molhado
que as paredes escorram águas
e cresçam cogumelos nas bocas espantadas
que a luz se canse e os candeeiros de rua tremam e luzam
e que se apague de cansado o braseiro do olhar?
interessa pouco à crónica do futuro
o momento em que ouvimos
debaixo do nevoeiro
agonizarem vidas como pilastras
de um subterrâneo de almas.
ou que sob a noite vaga
sob o fulcro da noite desprovida de azul
sob a luz fulcral dos olhos
amorteçam brasas
e vidas sobreviventes
de um velho Inverno
quem quer saber
dentre todos os sábios da modernidade
dentre todos os poetas avisados
que nestas noites de manto branco
a névoa se infiltre pelas mãos
e que o corpo flutue num velho acorde
talvez música ou lenda
e que o corpo não asfixie o sangue
mas o subtraia em prestações
suaves
ou que a névoa corra e rompa
o silêncio até a voz enegrecer
como as paredes
e a curva da noite,
quando nos prende os pulsos
e arrefece, quem a sabe,
quem anoitece em bruma e dor
sem um grito, na admirável beleza branca
que abraça a cidade?
e quem quer saber
do fino cristal de uma palavra
morta nos lábios, viva na pele,
quem quer saber o que se abre
e se repete
quando a névoa descobre
e a manhã se alça
com um sol discreto preso ao peito
e a noite foi afinal torpor e um sonho vago
num mundo rarefeito