estou no meio de um lugar que não existe, entre pessoas sem rosto e palavras sem boca. derramo um amor inútil por olhos vendados que brilham para dentro. desfolho nitidamente as palavras, como se dos seus bagos saísse a minha sede. durmo com um lençol que é a fina pele do teu corpo e me desoculta o sono. quando acordo descubro que não existes e farto-me de sombras e de véus e de mundos irreais e de voos da alma. uma redoma de ilusões. ouço a caminho do trabalho, músicas que alguém deve ter dedicado a alguém e eu acolhi minhas. emociono-me às lágrimas, entre uma gaivota e um resto da bruma do rio. imagino que a ponte é o outro lado do teu mundo, que passará um dia a ser o meu. entro num lugar onde tudo é contabilizado, até cada tecla que acertadamente se prime. até o elevador, se pára à primeira e não nos leva enganados para outro andar. povoo o mundo com um ser sociável, nem sempre assertivo, que mais tarde ou mais cedo vira a mesa de vez, se nada puder mudar em seu redor. amo as areias subtis do meu mundo oculto, onde desaguo sem que alguém me pressinta. falo-te sabendo que não me quiseste como te quero. engoli a rejeição, despi a renúncia e continuei. amanhã será um dia igual ao de hoje e a tua voz continuará a não desbravar a muralha opaca do teu rosto. o despertador não tocará ao contrário e o barco do Tejo não me levará para um lugar de areias quentes. a Primavera continuará indecisa, como a tua palavra que encolhe e mirra, afastada de mim, como se amar pudesse ser um foco de infecção, uma peste que mata o sangue nas pulsões da partilha. sei que existes, porque já te criei e exultei em tantas ocasiões, e te confundi em tantas outras. sei que sim, em algum lado estarás, aquele que me lerá à transparência, como janela brilhante de luz, onde apetece mergulhar o olhar e ficar para sempre. tens de estar em alguma lugar, tens de ser terno, como uma balada, cioso de estar com o amor. mesmo que não seja eu, tens de estar em algum lugar e pensarás no amor, como casa de tamanho desmedido onde a tua vontade se derrama pelos olhos. não serei eu, mesmo que seja eu, mas tens de estar em algum lugar. e ante estes dias de lacunas entre seres estranhos de um planeta que não me habita... sim, estou certa que tem de haver mais alguma coisa, talvez até mais alguém, para além destes dias despidos de luz.