sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Lisboa cristalina




Lisboa aguarela cristalina,
saltitantes passeios e poças
veias abertas pelas enxurradas
em lagos de lama expostas

Lisboa de manhazinha
laivos de luz derramados na calçada
fui ver Lisboa das arcadas e dos barcos
não vi poetas nem belas de rostos alvos

de Cesário vi operários nas valetas
e vi logistas na rua de olhar à espreita
mulheres de jeans em vez de costureiras ou coristas

vi uns mendigos que bem podiam já ter sido
professores de latim, ou algo digno
vi máureas faces a vender relógios falsos
e alguns turistas sem destino no andar:
todos eles enxutos e afáveis
eram seres altos impermeáveis,
à chuva que nos vinha no olhar

é um inverno fustigado: Pessoa talvez de olhar baixo
guarda-chuva na mão, rosto de pedra
a olhar de lado as senhoras nos saldos da estação
fantasmas líricos erguem
aos céus as suas brandas mãos

há rara poesia na cidade: gente parada
olhar de esmalte, vendedoras de flores
bailados de aves...

um sopro de sol e a vida acode aos bancos de mármore
velhos sentados com o tempo nas mãos
os velhos não sabem o que fazer com o tempo
pouco é o tempo que lhes falta,
e tanto é o tempo que lhes sobra

cristalizados os momentos que contemplam
para lá das visões banais do nosso tempo

E os velhos? Ah, os velhos
os velhos gostam de pombos e de os ver
na revoada em volta do alimento

os pombos são, dos seres urbanos, os mais livres
e eu que os vejo cegos e felizes
acrescento-me ao dia, na minha garridice:
é uma manhã molhada e fria, com um sol
que pouco aquece e não há dentro de mim
réstea de poesia: mas que importa isso
se neste momento, em tudo me alcanço e me vejo
peça de uma realidade sem brio?

Que pele me trouxe o tempo
que esta cidade fustiga
e ainda assim a vida vive, ainda tão viva,
nesta aguarela de chuva e melancolia?