segunda-feira, 6 de outubro de 2008

carta dos tempos que correm

o pensamento branco, frente a um ecran calado, onde cai como uma sombra o meu cansaço. chegar a ti é como alcançar o patamar mais vasto e o mais elevado do meu tempo. o tempo que guardo só para mim, onde me purifico e lavo, me distendo e me consagro à penumbra e ao silêncio, nas ablações do corpo e da voz, tudo clareado pela sensação da tua presença.
meu amor, por aqui já vindimámos o tempo novo, já oficiámos o vinho nas veias, já recolhemos os figos secos do quintal. as árvores tornaram-se mais magras e engrandeceram a sua nudez. vivemos dias soalheiros e noites calmas, volta e meia ventosas. as pessoas passam por mim sem me ler, com aquela argúcia que os teus olhos e só os teus, tiveram. parece que a cidade só existe na minha imaginação, porque ninguém de facto a vive. todos a percorrem na miragem de um oásis onde esperam encontrar sobrevivência, abundância, reconhecimento, fama, poder, dinheiro. aqui vivemos da reciclagem inútil do tempo, sempre o mesmo tempo repetido à exaustão. e é por isso que as tardes me apanham fustigada pelo tempo, sem merecer o louvor que a natureza me prepara e não vejo. sem merecer o olhar que te pressinto e não alcanço. sem me merecer na exaustão a que me obrigo. para me encher de algo. pre-encher.
meu amor, era tão mais fácil viver para nós, sentir que atravessavas a bruma poética e me segredavas ao ouvido as frases mais desinquietas. era tão mais fácil quebrar correntes e zarpar pelo Tejo até à barra, a contar gaivotas e sorrisos, a velejar beijos rente ao cais. era tão mais fácil se a tua solidão viesse sentar-se junto à minha e o amor te saltasse de dentro, onde talvez o implodas todas as noites. ou que nos pudéssemos sentar a confluir a mesma aragem, o mesmo vendaval, num mesmo espanto. como se estando mais próximos pudéssemos enfim aclimatar a libertação.
tudo tão conjuntivo, meu amor - somos capazes de voar ainda hoje para qualquer local distante, um espaço que possa ser, um sítio onde habite a posibilidade de sermos. entrego-me ao teu peito. fico a ouvir a música do teu corpo, queres? Afagas-me levemente e entre as batidas que ouço, o teu coração fala como gente e eu escuto. diz-me agora tu o que sentes.