tenho esta carta para ti, rabiscada no deserto da tua ausência. um deserto fértil, com a líquida permanência da tua vontade em redor da minha... mas eu gosto quando me levantas a voz e imperativo te impões na conjunção das nossas vidas. meu querido louco e resumido, se são as leis do nosso presente que na minha ausência vês a serem simplesmente cumpridas... tu falas-me em diferidas vozes, quando o que mais queria era o meu nome na tua, a tua palavra inteira e nua: todos os dias os sonhos da noite, mal a manhã se levantasse. apanhá-los como vieiras do coração e nacaradas luas que a noite nos ofertasse. depois as razões comezinhas de tudo que me apetece confiar-te de tanto confiar em ti. a confiança que o amor conquista. esta íntima medida do amor é um capital precioso e raro e é tua, é preciso alargá-la para dentro do corpo, rasando a orla do dia, como uma vela face à água a vencer a ventania, fazer a íntima narrativa da paixão, diário íntimo de uma paixão, conforme escrevi anos atrás. então não me conhecias tão perto, como agora que me olhas no fundo dos olhos e me intimas a abreviar a mudez. e eu que não estou ausente de ti, nem te calei o pensamento, nem a memória, nem as razões do amor, intimo-te a vir a mim pela porta principal, como vêm as notícias boas e as más, mas vir com a rosa do meu nome presa aos lábios, risonho e ridente, como quando o passado nos comoveu, para sempre. podemos abalar essa montanha, se quiseres, do passado eu na verdade preservo só o que não coube dentro. podemos limar o presente, com os dedos, com os dentes, cerzir o tempo, o pensamento, a ponte por dentro, mas deixa de fora o futuro, porque esse será o pulso que nos tomarmos cada vez mais perto. Bastará que saibas fechar os olhos e ouvir-me por dentro. Eu só sei da ternura pelo teu nobre gesto, decerto sonolento agora que me despes o ventre e esventras o sumo destas palavras. eu só sei de como vivo os momentos que tenho adivinhado porque pertencem à nossa condição de eternos nubentes. a urgência de me prenderes nos braços e te verteres, como quem despeja a morte, a urgência de me sentir presa em ti e revirada nas voltas fundas do teu ímpeto, o saber-te homem para o que de mulher em mim se nutre... são os motins das minhas tardes caladas, mas movidas de tumulto. beijo-te amado, com todo o meu corpo.