e eis que ao virar de uma curva me encontras e não me conheces, idos são os cabelos no caracol do vento, de mãos calejadas, já nem é do giz mem nada, é do teclado matraqueado, todo o dia, palavras calcadas, pressurizadas na pressa de as aplicar e embeber no link, na hiperligação na lição na webquest, no teste, ou a meio da sandes do almoço em parca poesia sempre de inspiração ribeirinha e da cor que os teus olhos mandam. os cabelos, então, sou outro tipo de mulher, mais miudinha e invisível, um rapazito vista detrás, as calças justas, um casaco e o cabelo esquartejado, a recuperar de um susto daqueles que as mulheres da minha idade têm e adiam para mais tarde, mas ficam assim, à espera que o cabelo cresça e o pesadelo esqueça. os meus olhos também aumentaram, quero ver mais o mundo e as suas cores, tudo reter e sorrir de todas as coisas simples e engraçadas. agora prezo muito mais o riso tolo, e dou por mim a rir em esboço no meio de muita gente. ainda me transporto como se fosse um corpo de cristal, pego em mim com vagares, cansam-me os pesos e os esforços e quase vivo na minha cadeira de espaldar frente ao trabalho. ao fundo a tela do Tejo, guardo-a para pensar em ti, nos intervalos em que me é dado erguer os olhos. a fuga que me faz agora os olhos maiores, à conta de te alcançar tão longe... e é por isto tudo que não me reconheceste, habituaste-te a captar-me mais pelas legendas da vontade, pelo suicídio poético que encetei e agora que me vês quase transparente, não esperas que tanta insignificância se tenha presumido musa. não importa que nada remeta para a jovem que posso ter sido, certamente que fui, de dentes brancos a sorrir entre os lábios rubros, como que papoila no auge do seu fruto. essa não foi sequer a que se pode ter feito notar, desde muito cedo tornámo-nos a essência do amor, sem termos sido sequer a pele do amor. agora, quero que me dispas esta pele velha, antiga, este escalpe de sofrimento que não sou eu, este rumor dos nossos dias idos, tudo que te terá afastado de mim e me vejas opalina e singela a nascer para ti na concha de Botticelli, para me poderes dizer, obnubilado de mágoas, também tu um esplêndido Rafael, purificados ambos, luminosos e fiéis: eis como o mundo nos pintará na memória que vier. quem me és tu, mulher?