quarta-feira, 30 de maio de 2007

a fala dos humildes

Não têm voz
foi-lhes sonegada no Estado Novo
um estigma que já vinha dos pais
tiraram-nos da escola na 3ª classe
onde aprendiam o que era possível
quando não estavam na casa da professora,
a D. Antónia das Pazes,
a fazer limpezas ou outros trabalhos
de que eram capazes

Antigamente era assim
perdiam a voz nos bancos da escola
a meio da tabuada, ou da laboriosa escrita do nome
aldeias duras e difíceis
searas e papoilas serenas fainas e duras
a espinha vergada e ainda tão nova...

A progenitura humilde
havia perdido a fala - havia o medo,
havia a jorna e o patrão, havia a prole e faltava o pão
(não me digam que sou neo-realista porque o neo-realismo
era a fome da Carrusca e a Carrusca existiu, deu-me o seu colo

e a seara de Fonseca e a de Catrina tiveram pele e boca
e esta era faminta)

Nunca ninguém os pôs na Segurança Social
faziam pequenos trabalhos de costura
ou de limpeza
mulheres sobretudo, às vezes viúvas
são humildes, não têm fala
os médicos não resistem a esmagar os balbucios
ficam irritados com a tremura da fala
e humilham-nos
na sua soberba de senhores da cura
falam tão alto, os feiticeiros da prescrição:
mais uns comprimidos para adormentar
empatar a dor
e saia, antes que perca de novo a paciência
que anda a fazer por aqui, pensa o médico
moderno, por vezes até o diz.
Mas se eu não sou surdo, doutor,
por que me grita assim?

E o desprezo do homem do banco
a conta a zeros, há tanto, tanto tempo
despesas de manutenção, que pensa?

A sua dívida é imensa...
Humildes recebem no rosto a estalada
e vão para casa pedir ajuda aos filhos,
que se passa?

Nasceram no Estado Novo
conheceram a esperança a meio da voz,
nada lhes mudou a curvatura da espinha
são humildes, não têm fala
passam junto de nós, não os ouvimos
uma geração inteira que definha
e o Estado Novo que voltou
não se vê ainda,
mas cria agora dilectos filhos
sem voz, porque se lhes amputa o pensamento
como se lhes exige o corte aprumado das unhas
a dentição perfeita - maus tratos lá em casa
falta de nutrição, filhos sem fala
onde na fala falta o pão


A receita do novo estado
prescrita aos homens de mérito
não falar e aceitar
o que trouxer o tempo e o tempo
traz o silêncio e a promoção
a cunha e a distinção. E a fome
calada do emprego perdido a meio
da velha estação...

O estado novo nas caravelas do passado
é um novo estado moderno e equipado
europeu e esclarecido - estamos com o mundo
estamos perdidos na dimensão incomensurável
do sucesso empresarial. Somos pesos na balança
equilibramos a dívida que não criámos.
Ganhamos para alguém o pão do lucro
a produtividade é que nos mantém à tona
do olhar do chefe, não podes fraquejar, só os fortes
alcançarão o lugar da raça,
a raça pura dos que não são humildes
e sabem atraiçoar

esses conhecem o medo,
avaliam e entregam os seus pares
têm medo, não podem fraquejar

os outros que são humildes
às vezes falam, não são de fiar.


E eu que falo e digo,
havia de me tomar o medo de fazer greve geral?
Ah, não, a mim não me metem medo
por enquanto o mundo
está na palma da minha mão
claro e distinto nos seus sinais

de alarme
não nasci no Estado Novo
nem sou humilde, e sei falar
Que faço eu aqui
que escrevo num deserto

este panfleto
da infâmia que nos afronta
e não o mando para longe,

para onde as almas velhas
humilhadas o colham

como uma nova flora de palavras
e de esperança
que os vingue da fala humilhada
da humilíssima alma
para onde os jovens sem lugar
as almas úteis sem trabalho
os novos humildes o possam apanhar?
Que se passa com os que têm voz,
já ninguém a sabe usar?

Ah, velhas fileiras da palavra
arautos da revolução,
por onde andam os cravos que cantáveis
as vossas canções nascidas das armas
e da coragem?