o dia foi uma travessia pela zona tórrida da existência, trabalho, salas abafadas, trabalho, livros, portáteis, sempre carregada, sede, tanta sede, a boca que não se calava, palavras a desembrulhar e a embrulhar, explicar palavras, corrigir palavras e depois no final da tarde, a casa de chá frente ao Palácio, o refúgio do chá e o meu momento a sós comigo, ou por outra, a sós contigo. fico cá fora a ver o vasto horizonte verde e urbano que rodeia o Palácio. aproxima-se o crepúsculo e os pássaros revolteiam pelo céu em busca de beirais. eu busco o meu, magoada pelo dia, beliscada pelas palavras e a má formação dos meus infantes, seca, seca, busco-te dentro de mim. os óculos escuros não mostram, mas o empregado sabe. já me conhece o semblante, a emoção do lábio, a tremura da voz que pretende ser natural ao encomendar. ele já sabe, chá de flor de lótus e uma tosta de frango, por isso às vezes poupa-me a fala e eu agradeço. não quero falar, ter de dizer seja o que fora a quem for. só a ti. e falar contigo é acompanhar o crepúsculo, deixar que o dia pare, a tarde se esperguice na doce lembrança de ti, uma brisa primaveril, quase carícia, tão suave, tão delicado o silêncio, murmuras-me algo, eu sorrio, raros carros passam, tu estás em tudo que é belo e eu renasço por dentro, aos poucos dulcifico-me, sou aquela-que-é-querida, a presença que alguém, longe, consegue combinar com a minha, porque outro mundo nos caminha por dentro do pôr-de-sol. nunca vai ninguém comigo ao chá neste dia. seria continuar a usar palavras, quando eu só quero silêncio, o teu silêncio, que é um afago da alma. guardarei este dia para ti, sei que nunca faltarás ao encontro, porque sabes que me fazes falta e exactamente quando mais me fazes. aninhada no teu beiral, como a passarada no seu, ergo-me feliz, a boca a saber a chá e os olhos em ti, vou-me embora, para dali a uma hora tudo recomeçar. mas antes fico a fazer tempo no carro e a ouvir música. hoje, ocasionalmente adormeci, tão bem me soube saborear-te ao crepúsculo.
boa noite!