O cálice.
Atravessou os meus sonhos nas mãos da noite e perdeu-se na arena, achou-se no sacrário de areia, o deserto povoado em que me deito. Tem de haver sempre um cálice de sonhos a encher-me os sonhos. Pacto, celebração, busca, expiação, a nudez que me revela os lábios impressos no cálice. Enchurradas que arrastam os escolhos da existência para o fundo convés. O convés da vida à beira dos lábios no mar da noite. Bebo os sonhos e as sombras. No fundo sempre um resíduo de veneno que me arde como farpa de toureiro e me instiga. O sonho onde sou eu e outro, eu a outra, eu outra, eu noutra que não conheço e me veste de noite o que não sou de dia. Os sonhos são os nossos duplos. E eu sonho muito, com o sonho de sonhar. Nasce a pergunta, cortando o ar em voo de capa. Por que há sempre este sal no fundo espesso da noite? Um Graal de busca sem altar. Que ironia... E um apático touro que já desistiu de me perseguir, de cansaço. E eu que ainda lhe fujo avermelhada. O vermelho exangue da vida dos sonhos. Transparentes, cristalinos, os que o são, extravasam qualquer cálice que os contenha. Tortuosas raízes emaranhadas na selva do pensamento que não se eleva ao cume da razão. Lava adormecida no fundo da terra. Ameaça de vermelho em forma de granada incandescente. Sonhos, capas de toureiro, fintando a ilusão, capeando a clara luz do dia, destroços de navios naufragados nos nossos dias e sempre, sempre uma montanha sem cume para escalar ou um percipício que nos abraça e nos salva no último momento. Este cálice é o meu Graal. Tenho-o sempre e nunca o encontro. No final parte-se em mil pensamentos foscos e felinos. Guardo-os e reponho-os. Na peregrinação da noite, bebo sempre o meu cálice dos sonhos. De manhã renasço de onde não sei se estive nem fui.
19 de Nov.de 2003
19 de Nov.de 2003