
há noites que são abismos profundíssimos,
remoínhos onde caímos e rodopiamos
até de manhã. tudo nos parece a finalização
do tempo, noutro tempo a finalizar em
breve, ou já findo. o pensamento escreve
e reescreve cartas ao tempo que pensamos
ter ido, e assim criamos o tempo novo da
ida anunciada. partimos mil vezes de nós e dos outros, dizemo-nos adeus sem mãos, só com um pálido sorriso, a nós mesmos, ao que fomos, e parecemos perder, no tempo em que andámos perdidos, agora que regressámos e gravitamos soltos na nossa realidade reconquistada.
nesses momentos é difícil acreditar que a noite terá um fim, queremos a manhã, para nos voltar o reverso do tempo, esperando que os ponteiros desandem para trás, para o que antes tínhamos. e nada nos explica a sensação de fim que nos empurra para a boca da noite.
ontem foi uma dessas passagens avulsas pela aresta da serpente. primeiro a inocência do sono, esse prodígio que alcanço com um simples embranquecer da mente. depois, quando já a barca lavrava no fundo mar da sonolência, veio um chamamento, os olhos abriram sem mais e pensei que alguém tivesse deixado ficar uma porta aberta na noite. mas não, a noite escorria um frio silêncio amolecido pela chuva. esta ganha intensidade, até se transformar em presença, o velho chamamento da chuva a rasgar-me o corpo numa dor de ausência. a chuva a ensopar-me a memória com murmúrios ouvidos por dentro, nada me fala mais de amor do que a chuva miudinha no telhado, nada há de mais íntimo que a chuva que me dita palavras inauditas perturbadoramente sós desde o lugar em que foram produzidas.
choveu dentro de mim a noite inteira, chove agora ainda no torpor do corpo que se deixa ficar, entre a sonolência e o longo afago interrompido, cuja pressão já ida murmura de forma presente gota a gota. enquanto houver chuva estarei em suspenso, não sei se de um tempo antigo, que me é presente, se de um tempo que nunca existiu e já mal ouço, porque foi sempre o reverso de todos os outros, o tempo em que acreditava que eu preexistia corpo a dentro e que tudo talvez ainda fosse um campo neutro. o tempo da chuva pelos olhos, sempre para o interior, o tempo das mãos de talha dourada talhadas na entrega, uma cama sobranceira ao medo sob um tellhado onde a cadÊncia da chuva empurrava cada vez mais para dentro a vontade de pertencer.
gosto de chover em silêncio. cobrir-me sob a cortina da chuva e deixar que tudo me molhe até chegar a inconsciÊncia e o entorpecimento da vontade. descobri que por vezes consigo chover para mim mesma as palavras que me faltam, como se no silêncio habitado ganhasse a dimensão de um tempo sem história, o tempo novo do apaziguamento depois das tempestades da memória.