terça-feira, 6 de outubro de 2009



recordo os tempos que sonhávamos
seriam nossos, mesmo que o mundo ruísse
e não nos salvássemos... tudo nos podia reverter
porque não dimensionávamos o tempo
muito menos o espaço. eu aguardava-te
e havia na tua boca sempre um cravo
ou um discreto juramento
na vitrine suja de um lugar recatado

líamos sempre um salmo entre os lábios,
entre murmúrios de merino e risos alvos
entre a cinta do abraço e a cintura do desejo
na suavíssima folha do leito

éramos únicos no limbo do silêncio
teria a noite cedido o seu peso imenso
ao dossel de cortinas de damasco
ao abandono no lençol diáfano
teria a noite posto em suspenso
o devir do tempo no foco do momento?

crinas esvoaçavam no sobressalto
virias adoçar-me a pele com o odor das tílias
virias ver-me no roçagar de uma palavra
e eu distinguia na multidão
a tua inclinação do braço, o risco profundo
que usavas, quando a tua boca se abria
e me fitavas.

quanta doçura, meu amor, viria ver-nos
rendendo doce a amargura
no fundo dos olhos sem medo:
o meu recolhido e insano
o teu límpido e molhado
os dois tão puros e perdidos
sem rumo...

ah, como invejo os vagabundos
que se acrescentam num fogo tão íntimo
e tão gelado: tudo em redor é dejectos do consumo
nada conforta, a não ser o sorriso próximo
e o olhar que regressa ao tempo menino...

ter-te no coração, é uma forma de valentia
um desafio ao mundo que me humilha
e me organiza, serva e útil, uma formiga,
o mundo que não me conhece
e não me estima, nem me admira.

descer as alamedas da manhã, cortando a matutina virtude
a pensar-te secreto em toda a magnitude que tem o mundo
faz-me pensar que existo e que afinal ainda vivo
dentro de um olhar que me distingue: importa o que eu diga
importa que seja gente; há simpatia e bonomia para mim.
Acabem as rosas duras do presente e que o teu amor
ou o que te restar para mim, me acompanhe e dulcifique,
como hoje, como agora, assim... um beijo de chá
e um regaço quente. até amanhã, solidão.
juntos somos mais gente...