passam-me os dias sem sentir o tempo. gasto-me na terra como um agricultor. achei em mim uma força que não tinha. cavo e remexo a terra, transpiro, bebo água e passo a mão na testa. olho ao longe a dança do calor na estrada, acompanho o diálogo das cigarras e imagino que me estás a ver, na minha faina. é tão simples existir ao lado da terra, transpirando-lhe o azoto e a humidade, alisando o verde que cresce e se renova. é como passo os meus dias, cansando-me a ponto de começar a sentir a máscula satisfação do dia ganho em esgotamento e suor. hoje plantei duas videiras. que fique para a história da casa que a mãe, morta num futuro inexacto, plantou numa manhã de Agosto as duas parreiras que hão-de dar uvas brancas e uvas tintas, cachos sumarentos que matarão a sede à nova geração e aos pássaros que vierem. escrevo história com as minhas árvores. posso datar os anos pelas árvores.
Isso passou-se no ano em que plantei o chorão. Ou não? Foi talvez no ano do plátano...
e entre o olhar que se perde na folhagem vive um mundo por datar, já há muito semeado. a paz espalhada nos meus gestos, vindima de teu sangue moço e aberto às veias dos meus seios, sempre férteis de amor por ti. e esse mundo medeia a vida, que reparto por dentro e por fora do olhar, como se tudo fosse transição, do gesto ao pensamento, da evocação à escassez dos lábios, da imponderância à suma concentração nos raros, enzimáticos, misteriosos sinais do teu ser. um ciclo de vida e eu com as mãos de Deus a mover à minha frente a seiva, o viço, a virtude, a paz e a vontade de te saber (bem...) profundo e semeado na vida, frondoso e feliz, neste silêncio da terra, tal como eu, aqui. Um beijo, amor da minha vida. Haveremos de ouvir juntos a placidez da terra, seja quando for, um dia qualquer... iremos importar cigarras e grilos onde os houver, arroteamos a terra com as nossas mãos, e deitar-nos-emos sobre ela, frutificando-a com os gestos de amor mais belos que me fazem as tuas mãos...