frio, há muito frio no deserto que exerço
a alquimia incandescente do silêncio
a noite em volutas de fumo
o lado brando da vida que vem das casas reunidas
a paz na mesma laje de luz, a leguminosa vida
tudo num segundo se acende
no exercício laborioso da memória
sou criança e atardei-me no quintal
a luz já deixou há muito a orla da serra
e eu busco num regresso de ave
o brazido que apetece
e frio, há muito frio no deserto que caminho
a noite a um passo do esquecimento, a noite adormecida
num canto do quarto a noite margina-me
e eu fico a vê-la passar incapaz de me insurgir
contra a solidão, esse costume
frio, frio entre mãos, frio no olhar
imponderável dissuasão esta de existir
nada importa num noite assim
onde houver calor eu estarei
e em tanta busca, o calor aceso em mim...
frio de um amor que já perdi
frio por ser frio o fundo azul sem o seu sentir
um lago de juncos feridos - sem lugar para o amor
o mundo é um lugar para existir
sem azul cobalto nem azul ultramarino
sem púrpura no ocaso e laranjais no empedrado
sem afagos e cortejos emplumados nas manhãs de Domingo
somos poetas e tudo nos estremece o verso
porque nos vestimos de intensidade, veludo e louras pérolas
estarmos vivos é sentirmos frio à beira do maior lume
e eu rasuro tudo, porque não acerto nada
errei o meu tempo, escapei para um outro
que me decorre nulo, derroído e lento
estarei pronta a voar quando me voltar a Primavera?
agora só sei voar cega por dentro...