terça-feira, 10 de julho de 2007

carta da noite



a noite devolve-me a palavra como se, opaca e viúva, não estivesse para ninguém. as presianas agitam-se sob o efeito de um vendaval rotineiro, a adornar o silêncio de uma suave inquietação. sinto-te a planear a tua fuga, como prisoneiro que cortasse na claridade do dia o arame farpado que podia cortar de noite. há em ti uma vontade de evasão como há em mim a de me aprisionar nas tuas muralhsa soltas. um dia despertei e era o recorte da tua sombra. os teus olhos são as estrelas que me guiam na noite e o céu que encontro pela manhã. são o rio que me margina e a margem que alcancei, sem contudo ter chegado. adormeço todos os dias com o calor do teu peito, abraçada a mim mesma, temperada, túrgida e porém serena, com aquela espécie de dulcificação vinda da crença profunda em alguém. creio-te como se tivesses morrido na cruz para me salvar e confio-te o meu mundo, o meu pensamento, os meus segredos, deixo-te trepar pelas muralhas que movi pelo deserto para nos perdermos juntos e juntos morrermos na sede do amor. confio-te a minha espera, o meu suor, o meu desejo, a minha verve interior na vivência do prazer. ofereço-te ritualmente o meu corpo em palavras e intenções, a dança das monções que nos ocorrem frequentes. sou mais tua do que todas as possuídas que viveste. és mais meu do que outros que já me houveram por sua. e não adormeço sem sentir estendidas para mim as tuas mãos. a tua morte ou a tua fuga constituem a cortina negra que encerrará o tempo em que me senti viva porque me erigiste mulher. tudo o mais, apenas encenei para viver a essência do amor. tu. por isso, nesta noite que é tua, recebe destas muralhas perdidas a tez lustrosa da paixão, o diadema supremo que uma mulher dá a um homem, a entrega de todos os seus tesouros e vulnerabilidades, a busca, o querer incondicional, o resgate íntimo do corpo. vem a mim como se não fosses já o pó do caminho, vem a mim como se nascesses, vem vagamente incerto de todas as incertezas, mergulha no meu corpo e na minha noite a tua presença, o teu desejo de homem, vem inebriar-me com a tua voz e todos os artefactos que te cercam, vem imacular-me na tua doce cercania, meu amado, vem, até e ser dia.