segunda-feira, 2 de abril de 2007

da tradução dos gestos


não me ouves como eu não te ouço. coses-me a boca com as teias da tua memória e eu sem voz onde ir buscar a fala, a cera de Ulisses profundamente imersa na solidão dos sons desliza devagar para a pedra acesa da garganta e eu só digo, "meu amor, meu amor", repito-me num eco de sílabas afásicas, a casa algema-nos os pulsos e, sendo apenas um som de prece, tudo em mim surpreendentemente acalma. não são palavras, é antes um gesto que trago aos ombros, como um velho xaile. mas, neste excesso de ternura luz a cegueira letal dos tempos bíblicos, quando a punição caía sobre os ombros dos homens da palavra inadiável: a cegueira que me ampara, mas não me evita a queda na minha própria incapacidade de dizer. tudo que produzo são palavras viscerias, desossadas as metáforas, resta delas pouco mais que nada, as minhas frases desventradas enunciam uma mão cheia de semântica afásica, são meras palavras que te assobiam em segunda mão o que outros sublinhadamente já disseram. não são verdadeiros gestos, amplos como deltas e rumurosos como as cascatas. mimam a vontade de te chegar ao fundo da pele, um gesto sem tradução na fala. mas mesmo assim, mesmo que nada diga, não me podes vender o silêncio que de silÊncio é feito o meu sangue, desde que me nasceste tarde. o meu tempo temporiza o teu, pela beira do rio a minha margem curva e apressa-me a chegada. eu já estou à tua espera no fundo da várzea, onde o rio pulula e rega os campos de extensa mágoa. esperar-te-ei até que o relevo geográfico te apresse a margem, esperar-te-ie mesmo que fiques entre as margens da escrita, entre as margens de um papel que nos coabita e onde a palavra avança e recua, conforme as pequenas cheias do rio de tinta que no-las dita. ocasionalmente achamos os nossos próprios corpos deitados pelas ribas, se faz sol e a neve brilha, os nossos corpos ladeados de palavras aflitas, o reconhecimento do corpo reacredita-nos em relação à vida. e quando o rosto se toca, as mãos se enlaçam, o corpo vibra, o suor recresce e o sonho alisa o sono, ainda assim o equívoco vinga e duramente separa, pois sem a tradução dos gestos, os gestos não têm fala.