segunda-feira, 23 de abril de 2007

urbanecer


o canto nu ouve-se já ao fundo, um canto urbano, sem vozes de rapazes, nem hip hop pelas ruas, um canto calado, onde nada resvala como sendo voz. na balada calma da urbanização, urge o som, a gargalhada, o sopro entrecortado da cama desmanchada, o ressonar, o silvo da coruja o senho a cegonha, o sino e a salva. a cidade canta a sua nudez entre janelas, uma a uma, emitindo estranhas luzes e néons intermitentes, coisas mágicas, talvez belas, de espantar o fumo industrial do dia. são os néons da existência em pantufas, uma permanência aliviada e muda, enquanto cada televisão acende e apaga nas janelas as cores transidas, gente que se guarda imóvel para a morte, assiste e não pensa, ou pensa e não assiste, ou assiste e pensa e persiste em pensar na fatuidade das caixas de luz, das caixas de dormir, de magia programada para duas assoalhadas e um sofá na barriga, mas ainda assim sentindo não sai para a vida, embutido num móvel do Aki.

o canto a nu, automatizado para o modo de silêncio, não há vozes no ar, nem locutores ou tiros, nem o inaudível som do sono colectivo. sabemo-los no ar, mas tingidos do pudor de existir entre tabiques de ouvir e de escutar. e eu conduzo o privilégio de vir desperta e tardia romper o canto nu, a insensatez de me julgar diferente destes rumos arrumados em filas de andares e apartados, tudo tão igual, noite após noite, sem estrelas no estendal, sem luar a nado no tapete, ou amor a meio da marquise, ou dança com espada e florete, álacres borboletas nos dedos verdes...
sei lá se eles são felizes, como posso saber se repararam na rua ensombrada de silenciosas minas, na lua franzina, meio queijo embrulhado em papel de neblina, no sibilante vento que nos rasa as costelas e nos adivinha, sei lá se sentem a trepidação do amor nas linhas teleféricas dos vizinhos, sei lá se saberiam desembaciar a lua e devolver-lhe a pele de veludo e espantar os gatos pretos, andar pelos telhados e miar, caçar gaivotas com fisgas, adorar as adorávais andorinhas, esfregar as lâmpadas de Aladino e no tapete voar, sem mais destino que o sonho... sei lá se sabem como se vive no limbo da possibilidade, entre águas mortas e marés insciáveis, entre bocas de orquídea, rosas de damasco, mistérios fractais, sacrários de areia raros e heras e cisnes entrançados, sei lá se sabem cheirar o louro e a fava e ver a leira aberta a folha pronta...
sei lá... sei lá eu se, por caminhar pelas traseiras da realidade, amar o invisível e tecer o invidente amor, sou mais feliz que esta boa gente que por aqui cabeceia frente a um anúncio de publicidade. ah, urbanecer o mundo e depois espalhar a poesia na parte mais descomposta da cidade... ou urbanecer a poesia e deixar o sonho numa praceta urbanizado?