terça-feira, 16 de novembro de 2010

as noites são grandes buracos com vida. afundo-me neles desprotegida, sem saber o que me leva, onde me atira e como me mantém focalizada numa intensa actividade tão sofrida... uma destas noites havia gente, muito barulho, vozes e pessoas do teu mundo, mas sobretudo havia a tua imagem que me abraçou como se me quisesse gravar no peito os lugares próprios do corpo. depois desaparecias e o labor voltada, com fundas ferroadas na testa e complexas fórmulas em construção feitas com os dedos. de dia parece que vivo ainda nesse mundo, mas sou levada a ter os olhos acesos, escavados e atentos, aplicados ao mundo. às vezes a meio do trabalho ocorre-me passar pelo torpor das letras com o livro a deslizar, ou a caneta,  e com os pensamentos a ficarem lisos e raros de tudo que me rodeia, uma espécie de  adormecimento da pele que me recolhe no supremo bem-estar da existância e assim vejo-me ir, para um mundo de infinita distância, embalada por ondas de conforto, talvez criança e segura a deixar-me confundir na sonolência, em direcção a um sítio quente e confiante. deixo as pálpebras moles a cruzar a tarde sem pressa, sem pedir licença, tudo tão fácil, tão liso e leve. reconheço-me próxima da matriz exacta da felicidade. nunca dura mais do que um minuto, talvez segundos, mas são momentos verdadeiramente únicos, sublimes, dignos de deuses e de anjos, ou dos corações inocentes e puros. quero deixar-me ir mais vezes para essa terra coberta de algodão, onde a dor e o medo e o cansaço se distendem. sou um ser vigilante. reconheço-me sempre a processar e a produzir e a planear e a pensar. as minhas noites são trabalhos que estou a desenvolver, recursos, aulas, investigação. acordo com a sensação de ter saído do trabalho, quando na verdade é para lá que vou. preciso de rebelar-me contra esta aguda consciência de existir que me persegue como pó e escuridão. porque terei de viver sempre alerta, sempre desperta, sempre em guarda, sempre atenta, sempre tão produtiva e útil, sempre com o mundo nas mãos e os outros na asa do coração?  preciso ir mais vezes para lá, para o canto das tílias, ao som das abelhas, a hibernar os sentidos, a hibernar o sangue e até os sonhos, a fazer-me insecto insuspeito num lugar minúsculo e ser apenas um corpo feliz, um grão acéfalo no pólen dos lírios. mas tu, meu amigo, podes ver comigo, para esse lugar em que nada existe, mas nos reconcilia com tudo. basta-nos um segundo num lugar quente e risonho, vozes ao fundo, cada mais distantes, cada vez mais apagadas à medida que as nossas, a minha e a tua voz murmurante, nos unem nesse deslizar para a semi-inconsciência e para o coma dos sentidos, liso e profundo - uma morte única.