quarta-feira, 4 de julho de 2012

distâncias


começou por ser universo
a distância que separava um ponto
de outro mais ou menos a sul

mais perto
na voracidade do encontro
entre a matéria que encontra matéria
formou-se o mundo

já só havia um oceano
entre um olhar e outro

mais longe no tempo
o espaço que é curvo
formou uma trança de rio
e o universo aproximou-se
entre as margens dos sentidos

então recomeçou tudo 
até ficar de novo
o mesmo ponto latente,
cintilante, luminoso, comovido


domingo, 1 de julho de 2012

a inclinação da manhã


chegou a vez da manhã
acender  a estrada outra vez

a manhã nunca perde a novidade
daquilo que nos traz ainda sem saber

com um pé dentro de um novo tempo
com os seus lumes insuspeitos
a manhã transgride o já feito

e sabemos que há uma nova forma
de refazer a trança dos sonhos

com uma nova inclinação
um novo rumo, mais perto
do lugar em que nos pomos

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Lançamento do meu livro CHUVA NO DESERTO


É já no próximo sábado que vou realizar um sonho muito antigo:
é o lançamento do meu primeiro livro,
Chuva no Deserto,pelas 16 horas na Vila Alda, em Sintra
(junto ao Museu de Arte Moderna, em pleno centro da vila). Aqui ficam os pormenores:



Preparei no You Tube (espero que dê) uma pequena apresentação de poemas
para quem não puder ir. Clicar aqui.  

O livro será posto à venda na WAF (aqui), mas poderão endereçar eventuais pedidos para o seguinte e-mail:
anaisabelfale@gmail.com

Quem puder comparecer no lançamento poderá passar uma tarde entre gente que gosta de dizer e de ouvir poesia, para além de assistir à exposição de Ilustrações Científicas patente na Vila Alda.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

onde nasce o poema


onde a sua sombra o segue,
onde o seu olhar o despe
e a sua capa o encobre
é aí que o poeta se revela

é nesse púlpito de neve
que o vento lhe sopra os temores
e a alma se faz vela

as árvores tornam-se estrelas
e o silvo das serpentes risca mais fundo
as dores que leva e é então que
o poeta sonha com o mundo

onde o silêncio se arma, de tão alto,
aí mesmo nasce o poema: é uma
pomba que se eleva
e voa num céu de asfalto até que
a respiração cesse e a rima venha


(Dedicado aos poetas amigos)

domingo, 17 de junho de 2012

elevação prodigiosa

foi uma catedral, ou uma montanha
a altura desmedida do amor: recorda:
tu trazias uma bigorna
de explorador
e a tua fuga era sempre maior

quis também ir
às vagas e aos vazios que te levavam
às marés que te traziam desmaiado
quis saber donde te vinha a rosa negra
e a negra dor

e a trepar, sempre a trepar
nas mágoas do teu olhar,
alcancei essa grandeza
que é dada a musas, deusas e semideusas

então o viço cresceu nas fontes
e foi como fetos que nos erguemos
frutuosos, verdes, clarividentes
com a clorofila do amor

bebi da tua raiz o poema
um travo doce de veneno
terias visto em meus olhos o fogo da terra,
na eclosão do teu poder supremo

mas tão altos estávamos que nos confundimos
entre veias avultadas de palavras
com um sonho escondido
nos espelhos de uma mesma alma

agora cravas a bigorna no ferro mais fundo
e, entre os teus sons ritmados, de quem quer
fundir numa dor só a solidão do mundo,
eu vejo cada vez mais elevado o nosso sonho
tão alto que não voltámos, desse sítio a onde fomos

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Uma borboleta esvazia as suas órbitas contra o sol,
É a sua forma de se embriagar de luz
E de infinito, de lume e de prodígio,
Curta como é a cintilação dos seres
Frágeis os ossos que enchem o tempo
De fugacidade - voos aflitos.

Adejam as asas de um verso,
Como se vê no andar ébrio do poeta,
Ou da borboleta, porque é o fim da primavera
E nos caminhos da serra a sede já espreita
Todos os rituais se cumprem em semicírculos
Entre a folhagem e a cara fresca das flores

Não encontro o meu estojo de pintura
Para fixar o poeta e o poema,
Na plumagem garrida
Dos seres e da folhagem

Não há tinta que cubra plenamente
O fio de melancolia ao redor do poeta
Nem o bailado derradeiro da primavera
Na paisagem

sábado, 26 de maio de 2012

aplanamos a montanha, o vale
e a colina, aplanamos a voz
e a válida vontade
até a fome aplanamos, quando
tudo o mais termina

só não aplanamos certas dores,
como as línguas de fogo das memórias
mais esquecidas

ou a vontade de alcançar os astros
que cintilam alto, como pedras do destino
as que nos circulam, perdidas,
na órbita mais alta da vida

ou o sentido da poesia
a que nos cerca os olhos
como a mais pura visão
do amor que nos anima


quarta-feira, 23 de maio de 2012

primavera na tapada


os bosques urbanos e o alvoroço da primavera:
um risco de cor no muro da quinta velha, um esboroar
do silêncio na agonia do comboio, uma urbanização
da cor das rosas destroçadas

não importa - é primavera no círculo da tapada
onde a pedra arde ao sol e as ervas daninhas brotam
com suas cores desmaiadas em chamas que bailam
enlaçadas

a primavera alcançou os olhos namorados,
perante a distinta nitidez dos verdes
que ornam as estátuas de cimento,
onde se encostam os adolescentes com seu
hálito solto

é tarde para parar o avanço das ervas relapsas
que furam entre as pedras - é tarde para impedir
a explosão de cor e a onda nos cabelos da aragem

há árvores que resistem, como almas, ao avanço
das carcaças de automóveis, das fábricas e das
terraplanagens que sucessivamente marcam
a morte lenta da paisagem

é tarde para impedir o tempo de rasar a vida
num ciclo contínuo de ouro e malva
que se espalha pela pele das jovens almas resgatadas

sábado, 25 de junho de 2011

finale

tu devrais t'approcher

tu aurais dû le faire
avant que les fleures
eussent commencé à mourir

le cycle qui se termine
est celui des mirroirs
et des mirages

tout le reste sera aussi
très rapidement fini
sous le sable tu trouveras tout
la pluie et la poidre
le plaisir et la vie

pars, emporte tout
ce qui reste

je suis fort
je saurai tenir la têmpete

le temps ira engloutir cet espace
le desert ne (te) montrera plus
sa face

sábado, 18 de junho de 2011

predição


levanto delicadamente a ponta da tua manhã
e  recebo em concha o teu suspiro
sonharás com a forma das nuvens e dos corações
construindo palavras novas
e novos continentes 
para o êxodo das paixões

rodeio-te na insónia dos meus olhos
com passos brandos de branda poesia

quero que o peso da atmosfera
te seja leve e tudo neste novo dia te eleve
à condição de um novo ser
sob os céus da cidade
mais amado e mais belo
como uma criança acabada
de nascer

com um toque de veludo 
e a arte que nasce a nascente
anicho o teu dia nas minhas mãos
e é a mim que o teu dia hoje pertence

domingo, 8 de maio de 2011

a porta que dá para dentro

oculto nos olhos da noite
sei-te no campo de visão da eternidade
é uma projecção dos sentidos que me faz ir longe 
até ao rasgão da noite onde te ocultas
para te entrar por dentro
e te tomar tanto, como quem sacia de vez
a sede e o pranto

meu amor, enquanto nos perdurar na pele o lume e a neve
pode não ser tarde para fecharmos devagar as portas que se abrem
uma a uma emparedados, não há janela para o teu pátio
de ti não alcanço o vulto, só as palavras
mas podemos ir fechando devagar as portas que se abrem

fecha com ternura o passado
já é tão tarde
fecha o tempo de hoje,
adormece os conceitos que nos fazem

o que for há-de abrir-se à tua
ou à minha passagem
fecharemos também a porta que der para dentro
somos tão frágeis

se nada mais nos resta
a não ser uma imagem
então dá-me mais e muito mais
das coisas que te fazem

fechar-me-ei contigo por dentro,
como um fetiche serás tu a minha última página
e guardarei teus todos os objectos:
a pena, a espada e a asa de ouro
que te levou de viagem

sábado, 30 de abril de 2011

manta cinzenta

depois da tempestade vem a tristeza
nem sempre vem o sol, nem sempre a alegria
depois da tempestade vem a manhã vazia
vestida de cinza e de velhice
num dia que nos envolve
numa manta triste

depois da tempestade vem o silêncio
o bairro em suspenso, as árvores densas
o teu nome preso, o teu olhar imenso

onde estará o teu olhar que é terno
e imenso?

vou quebrar a manhã por dentro
sairei com um vestido de rosas magenta
para afrontar a melancolia
para pintar o vazio cinzento

para encontrar o teu olhar
que é terno e imenso

segunda-feira, 25 de abril de 2011

o abraço perfeito

são ternas sombras as manchas do teu murmúrio
quando me sopras luminosas árias de arabescos genuínos
pintados com a tinta da china dos teus olhos
negros, os teus olhos, caminheiro
carvões em centelhas de alumínio puro
no tabernáculo da noite cego e a prumo
da máxima penumbra astral oculta ao mundo

são ínvios os momentos - não os sei descrever
como o fazes tu - com a leveza das lamparinas
e a chama a oscilar ao menor sopro da tua alma

é uma almofada doce que se leva à face
com volúpia e dor - arde-se por dentro de tão...
tanto, e de tão... pouco

trepas-me dentro com a generosidade dos olhos
e eu sinto-te a povoar a casa (lembras-te da casa?)
era de sal e vivemos nela a ausência de vida
e a pulsão da morte: havíamos de morrer um no outro

na verdade começámos a escrever paulatinamente
o muro do distanciamento - a casa e o lume, lá dentro
a luz detrás de um cortinado denso - e nós com tantas,
tantas asas de voar e desejos de chegar...


agora são ternas as luzes do parapeito
elevam-se na noite, como pirilampos ardentes

não há casa, mas há um lugar de clima temperado
os teus braços, que são âncoras presas
e fundeiam a leveza das palavras escritas no vento
e ouvidas por dentro - és ainda o rio e
és o leito
e eu moldo-me à corrente,
suavizada e meiga
pelo abraço perfeito

sábado, 23 de abril de 2011

o verbo proferido

a noite traz-nos o arminho das nuvens, iluminadas sob o lustro das estrelas. é a matriz da existência humana ornada de candelabros, a noite. extensa como uma caminhada no deserto até ao monte das Oliveiras. onde. a noite traz-nos a elevação suprema que triunfa sobre a morte, para além de. tudo. a noite que nos supende na ressureição do amor. a noite prenhe de mistério e lívida de luz. a resistência que nos ocupa o sangue em continuar a arder até o pavio nos consumir. por um fio. a noite que vigora até a viagem vir à voz e desaguar no ouvido. a revelação. o princípio de tudo e a morte que foi nascimento - o verbo proferido. e esta noite escuto com mais afinco o reflexo de tudo. pode ser apenas ilusão, mas este é o meu espanto e este é o meu mundo. 

segunda-feira, 18 de abril de 2011

orage

c'est une tempête d'été:
une chaleur infernale
et le soleil enveloppé de
nuages

et puis il pleut tendrement
des petites gouttes si fraiches
qu´on a envie de danser
et de sentir l'odeur de la terre mouillée
à plein corps

quand on s'attend au soulagement
la voilà qui arrive, la tempête
tout est silencieux et sombre
mais le bruit s'élève sauvage
comme un lion géant

et le crépuscule devient fievreux
puisque l'électricité des nuages
nous atteint sur les épaules
et sur les feuilles des yeux
même entre les pages

brutale rongeur, comme si le ciel
s'est coupé en deux morceaux

enfin la tonnerre se éteint
et c'est une pluie diluvienne
qui nous tombe dessous
enragée comme un taureau

mais le bruit de la pluie
ne dure pas trop

le ciel s’entrouvre
pour verser son ventre de feu
et les rayons au milieu de l'eau
éclatent avec des décharges brutales
même sur nous: une rage de fous
quand-même. on dirait que les dieux
sont en furie et qu'ils luttent avec
des tonnerres

c'est une mauvaise têmpete
j'espère que tu sois à l'abri
là où elle te prenne

car mon bien être c'est un chemin
qui mène à toi, à travers le beau temps
ou la tempête

j'éteins une bougie: écoute son petit souffle
pour que tu puisses trouver mon corps
en refuge

sexta-feira, 15 de abril de 2011

confluência

.

con(fluência)
te digo o que fluentemente sinto

rasaste-me ainda agora o véu da noite
como se me caminhasses na sepultura
ou me encontrasses no caminho do coração

meu doce amor

esta confluência do sangue
e da atenção
diz-me que o meu sacrifício
não serve o sonho,
nem arrasa a ilusão

fecho os olhos para ver melhor
o teu rosto grave, meu amor

deixo-te ir,
mas fico daqui a ver-te, ternamente
a querer ficar
e abro-te o meu lado da noite

chega para lá, anda, entra, está calor
não faz mal, para te abraçar, convoco
a mais dura invernia

e eu buscarei no teu peito
a confluência do sangue e das palavras
todas no mesmo lado da cama

...até ser dia e nos levar a madrugada

quinta-feira, 14 de abril de 2011



oh, my love, all around me
there is space and time
no lilacs no psalms
no green leafs

no earth to put my feet
no warm desires
between you and me

oh, I think it's time for you
to get rid of me

yes, it's time
you should move ahead

should you be strong
and in good health

you are to start a new way to heaven
while your senses are still fine

leave the poets in chains
because they are living just to die

should you be all right
and that's my deepest desire

that you should live your life
that's what I meant, all right

some poets should be more
like you, not like me

I'll be just fine

sábado, 9 de abril de 2011

apetece-me encolher devagarinho,
minguante como a Lua
para dentro de uma caverna do tamanho de um dedal
partir para a inconsciência total
um risco no chão, sinal evidente
da minha regressão

não percebo muito bem
quase nada sei do que não sei
dos poemas e dos passos
que deixas na minha alma
pouco deles alcancei

é a clarificação das palavras
contra brumas e rotas de névoa
que nos escurecem
como se entre nós passassem
longas léguas

és em concreto o que és
ou então, se usares um modo ambíguo,
deixarás a chave num lugar menos sombrio

porque para crer é preciso saber
que o tempo é apenas um lugar antigo

o tempo da bruma e do mistério
não, não temos a chave desse caminho

porque eu não sei, nunca soube,
não quero adivinhar o que nunca,
nunca, nunca, mais adivinho

sexta-feira, 8 de abril de 2011

o nosso mundo


visitamo-nos através do ar. a noite agora é mais ampla e menos trivial. recolho-me num banho e depois na cama fresca, a camisa aberta, seda e folhos, o corpo exausto. tenho muitos anos, sabes, tantos que me parece ter vivido o mundo inteiro dentro desta vida,  e outros ainda, se mais houvesse. acolho sonhos, mas não devia, bebo contigo do mesmo copo de solidão e de euforia. acerto o meu pulso pela tua hora e ganho contigo o mesmo naco de céu todos os dias, mas não devia. tenho nas mãos um mundo de ilusão que é teu e tu carregas outro que eu te dei. não devíamos. é tão frágil o vidro que nos separa que um dia fica-nos em estilhaços nas mãos. confio em ti. como nesta almofada macia, tenho em ti o meu mundo e a segurança de te ter. confias em mim. podes prender fortemente o nosso mundo, nas tuas mãos. aí e só aí sou bela e flor. ajuda-me a não deixar cair um só fruto desta árvore. tu, a presença. um dia, ao virar da realidade, podes ser tu e não és. e eu posso ser eu, mas não sou. e no entanto há vestígios de pó louro das estrelas no fundo distante do teu olhar.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

água pura

o que me apetecia agora era um naco de poema
algo substancial como alimento
um agasalho da pele ainda mais quente
do que a pele de marta ou de serpente

no meu deserto fazia-me falta gente:
os teus passos na areia e, por exemplo,
uma história surpreendente
com adagas, nómadas e ventos

um abraço no teu manto de carinho
talvez umas dunas após outras
e o horizonte armado de verdura

porque dentro dos teus olhos de lonjura
havia a natureza e havia ainda a água pura

domingo, 3 de abril de 2011

começo a manhã a ouvir a música dos outros, uma invasão intolerável no meu espaço. é Domingo e a africana do andar de cima espraia a sua saudade, invadindo o bairro com os seus batuques rebolados. calo-me e recolho-me a um silêncio contrariado. não sou desmancha prazeres. espero que lhe passe. não sou uma pessoa ruidosa. de tão discreta, deixo que todos me ultrapassem pela esquerda, pela direita, pelo meio. não nasci para ganhar. serei ganha por alguém, serei utilizada por alguém, serei útil a alguém, serei plagiada, despojada. e depois esquecida. e nesta passividade, assisto sem rumor ao devir da minha vida. o que me importa é não ficar, agora, despovoada a meio de uma palavra, uma linha acima da vida.

quinta-feira, 31 de março de 2011

a-ventura


viajo no império persa, entre tempos de sedas e coxins
visualizo as fontes nas altas moradias interiores
quando os homens corajosos rasgavam espaços
combatiam serpentes e ditadores
e rasgavam multidões alastrando como onda
pelas muralhas de pedra dos povos em redor

tantas aventuras!

deixa-me viajar hoje mais longe.
quero ter lábios de púrpura e a voz em seda e flor
vestir algodão e pedras cravadas no olhar

deixa-me ser o cavalo e a vasta tundra
e deslizar a liberdade na longa lonjura
e, como um peão num jogo de xadrez,
capturar a torre e a rainha e o bispo,
todos de uma só vez

deixa-me ser qualquer coisa que não seja
só ser o ser que sou sem ser seriamente alguém
ou alguma coisa

ataviar-me de luar, num quadro de Van Gohg
cruzar o vento e o ódio no monte dos vendavais
para achar o amor nos anéis de saturno
ou nos montes longínquos dos Urais

deixa-me saltar para o fundo do deserto, sim
do outro lado das areias, existe outro mundo,
por certo - onde Alice nunca foi vista -

mas há cantos de sereias serenados p'las palmeiras
uma tenda de mil e uma palavras de amor e derradeiras
risos no reino desaparecido das auroras
e das histórias no limite estremecidas
entre iguarias, chá e amoras 

faz-me narrativa, sim, eleva-me ao lugar de heroína.
quero hoje um colar de madrugadas e pérolas de rosas finas
amanhã havia de querer o resto e assim a morte, o mundo,
o medo, a manhã escura e todo o mal do universo,
enfim, (porque existes) já não (nos) procura

quarta-feira, 30 de março de 2011

segmento de recta, traço

traço um segmento de recta entre a noite e o teu olhar e não os distingo. por certo que ambos me pacificam após o delírio que se esconde nas horas do dia, quando este meu deserto me coloca miragens sobre os pés, quando caminho triste por dentro, anódina, quando me misturo com os últimos raios de sol e quando, finalmente, me despojo de toda a seriedade e a calçada começa a dar lugar a uma espécie de caminho cósmico -
onde tudo, mesmo tudo, até tu, pode acontecer. assim foi. estás aí, perdão, estás aqui. e agora és tu.

terça-feira, 29 de março de 2011

ao fechar da noite

a esta hora todas as luzes terminam o seu turno
nada se depreende da escuridão
a não ser mais escuridão

a esta hora o sono disputa-me
e a tua presença retém-me
como se soubesse que ainda podia vir
um pouco de emoção

resisto-me e venço-me
refaço o caminho da tua casa
e regresso com um punhado de calor

refresco-me e renovo-me
e quero mais; fico à espera
mas a noite já foi

e tu vieste cumprir a hora
num cavalo fatal de dorso descoberto
foi tudo tão rápido
um jacto de tinta
na fuga de um verso


e eu ainda espero a revelação
uma esmola simples
algo como a tua mão

apenas os traços bastantes que te apontem
sem coordenadas e sem nomes adicionais

o mistério é apenas não saber
como brilham os teus olhos
e de que cor é a tua tez de esmalte

o mistério é ver-te e sonhar-te
outra coisa será sonhar-te e saber ver-te
tenho de ter a certeza de que existes
como eu te vejo, uns olhos de porcelana
e um realejo ao fundo

de resto, aquele a quem já me entreguei
para mais me aproximar
dizendo-lhe tudo (ao ouvido) tudo
sem sequer falar

domingo, 27 de março de 2011

é cedo, mas é tarde
passou tanto tempo sobre o tempo
que o tempo agora nos avança
sem jamais nos alcançar

os ponteiros detiveram-se
e eu não sei onde

o presente tem uma cor azul
e o sol entra cá dentro

não vou situar a vida
em ilustrações antigas

tudo é poesia nas nossas vidas
ou isso, ou uma tarde de nuvens amarelas
sob um funto de brilhantes lanjejoulas

e as aves que regressam, sabe-se lá de onde,
a cumprir os ritos para que foram
prevenidas

ou isso ou pensar-te
sem quaisquer coordenadas

cada vez mais na zona protegida
à medida que a ilusão cruza
e recusa a vida

segunda-feira, 21 de março de 2011

domingo, 20 de março de 2011

um timbre de cobre


planície entreaberta
este deserto alado
da cidade aérea

mil pirilampos etéreos
ungem a distância

uma febre de luzes
atrás de outros horizontes
alagados de silêncio

ouço-te a voz
e não te conheço

enganei-me, por certo,
a tua voz é sempre doce
é o lago mais sereno deste deserto

este cenário emocionado
numa noite suspensa em fios de prata
lembra-me

que as tuas cartas já me tardam
só elas te autenticam
tão tarde, mas seladas
com a inflexão do amor

só elas me interessam,
os teus passeios de papel
os teus sonhos de papel
a veia aberta no teu sangue

quando me escreves
à luz das noites duradouras
e douradas, em que as estrelas
se demoram mais na curva
da estrada

sei que és tu nas tuas cartas
pela marca de água
que te leio na voz

como um timbre de cobre
secreto e íntimo - nós

podia ser seda
e sedução, mais ainda, sopro de luz

meus olhos frescos de luar
nesta latitude nossa

nesta lua maior
ampla no céu

neste véu de veludo
sobre nós

é que eu deponho
a noite a teus pés

faça-se mágica a
veleidade da voz

dorme no meu peito
a pedra do sol

deitarei meus cabelos
soltos pelo sonho

vem pela minha paz
e pelo meu peito
a prumo

sexta-feira, 18 de março de 2011

O Crepúsculo das Aves


eis o crepúsculo das aves
num céu cor de salmão alçado sobre os prédios
é o refúgio das asas que se esvai
num som calado

é tão cedo para encerrar o dia sob as traves
tão injusto para o voo simétrico
das minhas aves
fica a Lua
hateada a meio da rua
Lua de dia, é luar mais cedo
e lume aceso no barco do céu

e eu olho o tema da natureza
frio ainda neste Março imerso
em lenta infusão de frio e medo

e penso que o tempo é maior do que nós
cessa tão cedo e tão tarde nos traz
a flor feliz do desejo, a casa e o amor
que nos amplifica e satisfaz


quinta-feira, 17 de março de 2011

o labirinto e o fio



tu tens o labirinto, eu tenho o fio
eu tenho a prata arrecadada
e o tempo nos fios dos meus cabelos

encontraremos a saída para entrar mais dentro
e tudo nos vai para sempre embranquecendo

viajaremos na crina de alazões brancos
os pégasos ligeiros dos minutos do encontro
tocaremos alaúde em ritmo brando
e o tempo será antigo e longo

nas válvulas abertas do coração
onde me andas onde me prendes

abrir-se-ão bocas fumegantes
para haurirmos brisas de temperança
e entre os dois, se tu quiseres,
há um fio de luz que não se arranca

.

terça-feira, 15 de março de 2011

let me pass by unnoticed
without any virtues or vices


please don't think of me
as a model or something

I'm not perfect
I'm not a winner in ethics
but I´m not either a looser
in humanity

this is such a crazy think
sometimes you frighten me
sometimes you gave me
peace and security

I guess it's the way it is
I notice your struggles
but I'm blind and just can't see
how I can help you to be really free

this distance is sometimes
unbearable
If I'm not to share your world
please don't let me listen
to the echoes of this dark something
that uses to hunt you in a way
that in the distance I can't bear
nor help to put away

you have my deep attention
you have my thoughts
please take care of them
they are all yours

sábado, 12 de março de 2011

presos na distância



sempre foste tu,
nunca houve antes outro fascínio
nem nunca houve antes outro mistério

és sempre tu a causa
o efeito e a consequência
a pausa, a recta e o destino

e aqui estamos nós, presos na distância
unidos pelo tempo que nos enche e nos devora
entre o dia e a noite vinho de inquietação

não te ter, foi o preço que paguei
por te ter encontrado,
ontem
e agora - sempre

nem tudo é poesia, nas palavras,
algumas são nuas e emocionadas
outras ainda usam véus e finas metáforas

mas são a expressão exacta
do murmúrio antigo e sempre renovado

penso o teu rosto e vejo o teu olhar
é um cometa rápido a cruzar o espaço

depois visto-me de luz e alcanço-te
não sei onde, nem em que águas
mas sei que esteja onde estiver,
terei sempre as tuas palavras


sexta-feira, 11 de março de 2011

rosas recolhidas


escuta:
a chuva chora as lágrimas
que alguém recolhe
claramente para dentro
com o alheamento das rosas


há sempre alguém
que se esconde na chuva
e não orvalha o rosto
com o que lhe chora dentro

é uma coisa
que decorre da cadência
de cada gota

éguas soltas e molhadas
ao longe, claramente lentas
num campo de flores minúsculas
rochas ensopadas, pedras soltas

aves resignadas
como mãos, caídas,
o voo retido pela chuva ouvida
em que pensam as aves
quando não voam?

depois, há a água dos teus olhos,
líquida, azul esmaecida
um excesso de sal na tarde
a vida recolhida na paisagem que te arde

a chuva aproxima-te da fonte
bebes o silêncio da árvore sorridente
o que pensarás das lágrimas ouvidas?

não são minhas
são de alguém
que ninguém suspeita

e declina a vida no lamento da chuva
nesta tarde de gaivotas e nuvens difusas

ouve, meu amor, como o rumor da chuva
nos retira do tempo: rosas distraídas
em suspenso e lágrimas como folhas
molhadas - por dentro.

quarta-feira, 9 de março de 2011

somos diferentes

somos diferentes,
se eu vejo azul, tu vês verde
se eu vejo vaga tu vagueias
e vês nuvem onde há areia

somos diferentes,
e depois?

que interessa que vejas alma
onde eu vejo apenas corpo

se Sancho e Quixote
de tão opostos
faziam brilhar o presente
sem pôr em causa o futuro

somos diferentes,
mas que razões há a opor?

se quando a tristeza nos vem
logo nos tange o amor
se quando o silêncio nos cresce
logo um de nós se acentua

somos diferentes? quem diria?
se quando nos olhamos de frente
vemos a mesma alegria
se quando a solidão nos morde
ouvimos a mesma harmonia:
um longo e límpido acorde
que nos deixa em sintonia
num beijo que nos envolve

somos diferentes?
Que sorte!

terça-feira, 8 de março de 2011

carta azul


 não sei que te hei-de dizer. a ternura que ilumina o teu nome risca-me o vinil das palavras quotidianas. a tua presença está dentro dos minutos e dos meus sorrisos interiores e falo-te dentro da memória das minhas células nervosas, por impulsos, como a chuva. tenho um esboço do teu rosto e um imperativo de silêncio para viver contigo, como se só na zona azul da memória planassem  as nuvens, a espuma do crepúsculo e os sinos do entardecer e assim decididamente me amparo em ti que és a noite, com todo o tempo que nos resume. tenho um esboço do teu nome e um lugar de florestas e jardins de pedra e quartos forrados de veludo, espaços gravados na memória dos tempos que foram nossos. ouço-te e compreendo apenas o que os meus sentidos conhecem. entendo apenas o esboço do que és. e para sempre te desconheço e te venero por tudo o que me dás e o que não dás.

domingo, 6 de março de 2011

o tempo das orquídeas

estou contigo no tempo das orquídeas
diz-me se este é o presente que nos abre as veias, ou se outro há mais próximo da vida

hoje nenhuma palavra se pode perder
na fusão das nossas bocas - vejo-te
por entre as nuvens soltas
cuja brancura é o esmalte dos teus dentes

com um sorriso dentro e um olhar furtivo
vejo-te o gesto (con)doído

estes Domingos plácidos e plenos
planos de prodígios, clamores amenos
são rubros de romãs e rosas desfeitas
depois de passarmos pelo peito
as razões nem justas nem perfeitas

meu amor, não é fácil subir por este caule
e sentir que és vivo, intenso e real

se me perco no laranjal
toma a minha mão e corrige a rota

quero velejar nos teus olhos
como quem anda no mar, mas para dentro,
sempre para dentro das luas intermináveis
dos vendavais presos aos móveis
o rodopio do mesmo grito
sempre a direito, na cegueira em que consistes


quero que o real nos participe
o sonho tão mais possível,
quero ler-te no lanço do sorriso
tão (menos) solitário e triste
porque afinal, eu existo, sim,
e tu também (me) existes
podia ser chuva miudinha como pérolas de orvalho
silêncio sideral, o fogo dos astros

podia ser a chegada de um bando de aves que viesse
em lugar da Primavera
ou um sopro de morte que passasse

podia ser uma música vinda de outras heras
para trazer um feixe de memórias

mas algo me tocou com as suas asas

pareceu-me que a minha solidão era mais funda
nesta noite de empenas tantas
nesta esfera fechada em que me esperas
quando a noite se acrescenta longa e inteira

mas foi só por um momento
existes, mas não te tenho, nem te entendo

existo, mas não entendes a rede de palavras
nem percebes os intervalos que se abrem
pouco sabes na tua arte de adivinhar as brumas

eu, nada sei, nem o teu nome, nem o teu rosto sequer
nem a forma como ris, ou se abraças outra mulher

só sei que as rimas de tão óbvias
ocupam o espaço todo do dizer

podia ter sido um palavra terna, ou um suspiro
de tanto que não digo

mas saiu uma trança grosseira e sem sentido
um verso sem asas nem suaves melodias

quando afinal o que sinto é que por vezes
não te sinto real e verdadeiro
mas mais a rara expressão de um mito

mas repousa em mim o teu olhar,
meu querido, dorme que eu velo hoje
para que o teu sono te leve ao lugar
onde tudo isto adquira o seu verdadeiro sentido

sexta-feira, 4 de março de 2011

as folhas novas de maio

não sei quantas vezes já te surpreendi na última letra que me dirigirás. também já me vi a mim mesma a quebrar os laços visíveis e um silêncio de pedra logo a seguir. não sei qual dos dois sentirá primeiro essa lacuna que o tempo há-de trazer, mas se fores tu, deixa-me palavras a esvoaçar, onde eu as veja, que venham ainda muitas como as folhas novas de maio, cartas tuas a ensinar-me o tempo a flutuar e o modo único e ímpar de alcançar a transparência das nuvens - só com um olhar. ensina-me agora a viver sem palavras o que depois será o-não-viver. uma espécie de frio. a indiferença do mundo. a certeza de que nada serei para ninguém. era especial para ti. sou? não vás, então. não sei dizer o que de ti me completa tanto que sem ti nada no mundo me saberá completa ou suspeitará sequer o que já fui. tanto de ti, assim. fica.

quarta-feira, 2 de março de 2011

esperas pelo mote até que a matriz da noite se defina na sua plena luz sideral

eu chego armadilhada pelo dia e levo algum tempo a despojar-me da poeira burocrática e a vestir o veludo impecável dos sonhos

preciso de me reclinar na longitude do teu olhar, para que a noite não me cerre os ossos de tédio, esse frio da pele que se vê nos olhos de tão insondável fundo

preciso da litania do silêncio consentido, conforme preciso do sono
onde renasço a vida

preciso de apagar o frio e de ferver nas veias os lírios dourados com que me
acaricias. preciso de. e depois também preciso, muito, de saber de ti.

terça-feira, 1 de março de 2011

ervanária

finíssimas hoje as ervas entrelaçadas
em copulativos verbos de heras e de cheiros
em chá de raríssima felicidade

entra o silêncio como figurante

escondido no vão da noite, irá passear-se
pelo quarto até se derramar pelas tábuas e não sobrar
mais nenhum estilhaço de mim

vaporizo a palavra para que se afine
e sintetize na essência das coisas
urgentes de dizer

convoco as rosas e os ritos raros
os odores de finíssimas ervas

e os vapores lembram baunilha e alfazema,
cavalinha e manjericão,
malva, salva
e dente de leão,
artemisa e sabugueiro, cidreira
gengibre, hortelã


são doces as doses de sublimação
que sustentam os sentidos
quando retenho, expando, expiro
e exprimo a tisana que te diz do amor

e que prende nos lábios a doçura do dizer
e que acoberta no ouvido a perturbação
de ouvir dizer o que de amor se diz
nas noites de chá, sonolência,
dilúvios de paz e de um cálido anoitecer


o que me apetecia agora
não era uma carta
nem uma frase
nem um impulso,
nem um nome doce

embora a carta me emocione
a frase me desperte,
o impulso me apeteça,
o nome doce me aqueça,

o que me apetecia agora
era trocar o tempo
estender-te o meu
receber o teu
e juntos no mesmo patamar
trocarmos sonhos
como quem troca de pele
e se vê de imprevisto
 a desaguar no amor
de olhos abundantes de amor
de corpo afiado de amor
e as palavras agudas na boca
a escorrer pelos corpos
como pingos de ouro

apetecia-me esse diálogo,
ou outro, ou muitos,
da tua boca para a minha
viria um segredo, uma
narrativa sem fio
uma fuga sem muralha
uma reclinação sobre
o tempo - sem vazio

domingo, 27 de fevereiro de 2011

longing for something

I'm lonely my lord
I'm lonely as a lonely tree

can probably
ever be


I'm longing for something
I don't know what's going to be
this blue melancholy
is stressed inside me

above there is the sun
I can feel it from here
but I can reach anything
neither the sun
neither thee

I notice there are flowers
somewere along the streets

I can pick them up
with my senses

as I can love you
with my mind
and my hands
so dumb and blind

but I can't avoid the melancholy
of being alonside
with the fragile ideia of thee

and this little flower
in spite of growing in the shadow
one day it is going to be
a strong seed of memories
and sorrow

but that's all I've got, see?
please don't stop.
Tell us a story.
To you and me.

Wath was it like in the old
days of fancy dreams?

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

no fogo da manhã

o fogo das manhãs
flutua nas nossas mãos, amor,
nas nossas mãos
de feridas saradas, profusas, difusas
nas nossa mãos antigas

o fogo da manhã circula
no ar e nas flores
nos insectos e nas aves
na ramaria das plantas
nas copas das árvores

o fogo da manhã amacia o ar
corre transparente uma brisa leve
circula entre os prédios um dossel de luz

nas ruas populosas circula a liberdade
circulamos juntos eu e tu

dá-me a tua mão no fogo da manhã
iremos pela cidade no culto íntimo do sol

dançaremos a liberdade de viver
sonharemos a liberdade de ser

no fogo da manhã
é imperativo... viver!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

sonolências



 I

estendo as mãos no escuro
a tarde move-se devagar
não há pressa em devorar o tempo
consumo-o em doses moderadas
de silêncio e dor, febre e sonho

peço à dor que pare
e que o hálito das árvores,
ou a serena planura dos teus dedos
venha refrescar-me a fronte
ou aflorar-me com um beijo


II

limo as horas pelos dedos
enquanto te espero
devo ter delirado por um momento
estiveste ao meu lado
e a ternura dos teus olhos
suavizou as batidas do tempo
que me faziam eco no corpo

agora quero mergulhar na sonolência
para te ter de novo

III

mas antes preciso de te saber
seja o que for, uma palavra
um sopro

um sinal de que o tempo é nosso
e nos pertence o universo
que sabemos criar por dentro
na rima simples de um verso

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

memórias revisitadas

 

leio-te os olhos
infinitos
afago a face em ti
e vejo o alcance extensíssimo
do teu olhar

sei-te mais longe
e de tão perto te busco
que me cruzo com o teu peito
para ficar

diria mais vezes
o pronome, tu, tu, tu
e repetiria vezes sem fim,
o nome que te diz
como uma água fresca vinda à boca
na sede do Verão

meu amor, o nosso reino
não tem espaço, nem tempo certo
era uma vez

uma árvore e uma ponte
um rio e uma vida algemada

era uma vez um dique
e a mão que o abriu

era uma vez a corrente que fluía
e o sangue que se avivava
e depois foram tantas palavras
que o amor extravasou as margens

compulsivamente
amei-te, porque me medias
e eu te chegava

e porque me vias
onde ninguém mais me suspeitava

e porque eram lindas
as tuas chegadas

chegavas e eu respirava enfim
partias e eu chamava

se te conheço os traços
já te conhecia o coração

agora só quero ter-te
e sentir que ao meu ouvido
me murmuras flores, arrebatado

como eu
intensamente só e sonhador,
meu bem-amado

chá de centelhas


hora do chá
descida ao lago doce e quente
do afago em busca do fim de dia
ao longe a palavra sempre
e uma manta leve
na poltrona vazia

renda de palavras
e o sabor crescente
da rosa mergulhada em água fria

rimas em renda e vapor de palavras
unas simétricas nas toalhas alvas
dispostas na mesa da merenda
um chá de fagulhas e centelhas
doce de romã numa salva
e chá de bagas vermelhas

rumor no soalho
provavelmente um bicho de casa velha
ou o lugar imaginado
onde a casa se ergue e emerge
real e verdadeira
pois nós dois, enfim,
um só corpo e lado a lado


.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

os dois lados de Psyché



lutam em mim os dois lados de Psyché
quanto mais te sinto, mais te quero ver
quanto menos te vejo mais te sinto

há uma inflexão na tua voz que me
confia o que és

muito te ressalvo e questiono
conjecturo tanto, como o tesouro
que encontramos perdido na floresta
e não cremos verdadeiro!

mas, atrás da venda há uma penumbra doce
pela qual se escoa a clara luz
da tua voz

e o tom é de doçura
de ternura tanta

que o meu corpo se abandona
e a minha voz te canta

nas albas marés
nas noites de fuga
nas madrugadas de pertença
com tudo o que me és


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

é do deserto que vem o vento mais fino
e a fuga que é chegada e desvario
aqui o desembarque na noite fria
só com as estrelas por companhia

aqui, a fina fragrância das dunas
as algas secas dos meus braços
e as fontes ocultas
outros climas, são do deserto
tal que a chuva e a bolina

conheces o caminho
ficaram rosas e serpentes,
pegadas fundas do passado
que ainda encontras vivas

vem ver-me no deserto
aqui há sal que nos torna mais puros
e um vinho que nasce mais cedo
antes da vindima, o vinho
que guardamos para o futuro

manda-me uma carta que
me ponha os olhos longe
e os braços como caminhos
e nos aproxime os lábios
tentadoramente devagar

aqui no deserto produzimos a miragem
fugimos num cavalo, em pregas de cetim,
bebemos orvalho, nas noites frias sem fim
mil e uma verdades te guardo sem dizer
mil e uma formas de solidão no fundo das areias

sepulto-me, na fina poeira da noite

sem ti, a escuridão e a tempestade,
são como um pássaro negro e esfomeado
que passa e me bebe os sentidos - nada
é só vazio

 sem ti o deserto não tem caminhos
nem escarpas de altas árvores de rapina

não há mistério num lugar
onde as mãos não se unam
para juntar o tempo e o corpo
para fundir num só momento
a poesia e o mais íntimo sopro
dia em suspenso
doce penumbra de chuva
e de silêncio

já pouco há que não saibas
tens tudo
habitas dentro
em frente, ao lado,
ainda mais dentro

assusta-me ser tão
forte a permanência

e eu que guardo
tão recatada
a minha circunstância

diz-me se vês daí o mar
porque eu não vejo

recolhe os teus olhos
para dentro
e sê meu espelho

aquilo que vês
é o lugar onde o tempo grava sulcos
radiosa passagem minha pela vida
agora extinta

cumpro-me com um sorriso
mas não há mais vida nestas veias

apenas a produtividade me cansa
não os anos e o peso
das coisas sobre a espinha

sempre foste uma fragrância
à noite sobes a palavra até ao cimo
e eu sinto uma presença

quando adormeço
não sei medir a distância
porque sempre foste um verso
e o verso é um som
que não tem voz, nem rosto

não existes
para além dos meus sentidos
existindo sem eu saber por que nasceste
nem porque achaste o meu mundo
tão improvável, tão pouco apetecido
adormeço de olhos presos num lugar
suspenso

adormeço e uno-me a ti em cada lapso

ergo a minha palavra antes do sonho
e adormento os sentidos
e vou e venho

estrela da alba
aqui me mantens, nívea de marfim
pálida de palavras

que seja quente e luminoso
o poiso de teus pés

e que anoite te traga e leve
num ramo de deleite e balancé

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

a noite uiva lá fora
parece lugar comum mas
é uma natureza zangada
que zurze as persianas
e os estendais

acolho-me a ti
à tua secreta agulha
que estranhamente me trouxe paz

ao teu mar que me amortizou o medo
a uma delicadeza que não sei definir
talvez uma doçura quente e doce
como uma fatia de lua
que me ofereces
e um afago de anjo

e o círculo forma uma planura
de altitudes rarefeitas
um extenso mel salgado
a brilhar nos lábios
um sorriso sim, a minha
forma de pedir que me sossegues assim
todos os dias,
como a uma menina perdida
que não sabe se encontrou
a boneca, ou uma imitação dela

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

está quente o meu deserto
nestas areias me envolvo
e me remexo
e não quero sequer
usar os olhos
nem os ombros
para abrir os axiomas
que trago cansados
pelos anos e pelos
(des)entendimentos

não sei
e hoje até é dia
de não saber

só quero manter
intacto este calor
no meu deserto ao sol
sob a areia da tua voz
a dormência do teu
olhar que me
vertes só

nestas horas mais fundas
que o tempo nos concede
aqui somos inteiros
e nada nos precede
fica nesta ampulheta
comigo
até que a manhã venha
e tudo nos desapareça
estando enfim a viver o inverso
da vida que vivemos
eu e tu, pelo verso
e pelo sonho

domingo, 13 de fevereiro de 2011

a noite avança pela claridade dos minutos
não sei quantos se acrescentam a cada ponteiro
para chegar ao infinito

fazer da poesia a vala comum
(de duas vidas) é um espelho partido
que seguro nas mãos
e me reflecte mil rostos
e mil e um versos absolutos

nas minhas mãos em estilhaços
há uma serena novidade
que de doce e difusa
me planeia recatada e viva
e me assusta

por detrás das cortinas altas
e dos chapéus inclinados
estão palavras que admiro
que me fascinam e me realçam
mas me contraem

sempre foi assim desde o primeiro dia
sou cada vez mais o meu próprio lugar
e a minha própria melancolia, se não souber
que face iluminada mostra a lua


espadas lançámos já e setas desferimos?
de que lugar antigo nos trazemos
que conchas e búzios recolhemos
que palacetes e quartos erguemos, destruímos,
erigimos?


a noite avança pela claridade dos minutos
e eu enceto e adio a minha madrugada
presa aos ponteiros do infinito

sopra uma suavidade nova
na frescura dos olhos
deve ser assim que se entra no paraíso
com os passos aveludados e aéreos
vai pelo deserto, rasga o ventre das areias
e revolve as rochas
realiza com as tuas mãos o prodígio
em novos buxos de poemas
que a aridez doura de arinto
e outros sabores que à uva crestam
de novo

deixa que o verso seja longo e prolongado
e de sintaxe agreste
só os versos arrancados à terra seca,
lá fundo,
onde a terra guarda seus sais e seus fios de água leve,
só esses subirão aos céus numa nuvem breve
e se esfumarão nos olhos de quem os replanta,
em nova terra,
até que um rebento ouse a bizarria de viver
nas terras bravias onde nada há que medre
e se sustente

assim e só assim, haverá canteiros no deserto
e estes darão rosas mais que os cardos
e o gengibre, que na boca amarga e doce emerge,
será como ter rosas e lírios
entre as sebes das cidades mais serenas e mais férteis

é preciso mudar o lugar das coisas, para evitar a submersão
em ondas de pó, a poeira cansada do deserto

gosto de novos lugares, como da chuva amena que me cresce
gosto da nova inflexão da tua voz: por onde andaste
eu não te achava, estando só. este é o deserto que
me demora na escrita reunida sob os ossos

e assim me és, novidade e cintilante pó


.

domingo, 30 de janeiro de 2011

domingo, 9 de janeiro de 2011

breve como tudo


quanto canta este sol na casa ao frio
quanta humidade sai seca pelo peito
e na pedra a sombra se levanta acesa
mais cedo na primavera que ora chega

castas ainda não se crestam pela veiga
mas corre já a seiva nas artérias verdes
é um tempo alegre que nos aquece
e nas palavras lança flores e borboletas

tudo será breve, a luz a entrar pelas seteiras
o vento recolhido e breve
a chuva e o lamento das goteiras
virá a nuvem que trará a tarde
virá o gelo que faz sede
a idade que enrugará o riso
e eu sei que tudo isso
será também breve e impreciso

.

sábado, 1 de janeiro de 2011

recommencer

on recommence
on entrouvre les ailes et on s'envole
envers l'inconnu, envers l’infini

soit le froid, soit la chaleur
ce qu'on va trouver ce sera
toujours du nouveau
des jours longs et durs
ou légers comme des plumes
des nuits blanches ou noires
des rêves où l'on se trouve nouveaux et purs
ou des cauchemars où l'on se trouve perdus


c'est le premier jour de cette nouvelle année
et tout que je sens c'est de l’inquiétude
car je ne peux pas prendre le temps
doucement à mes mains, comme un enfant,
et lui souffler des mots d'amour
pour qu'il me sauve des mauvais vents


pourtant il faut croire aux rayons de soleil
qu'ils viennent apaiser les yeux
que la vie nous retrouve de plus belle
et que le chant des poètes puisse se produire
pour épargner très vite la bonne nouvelle:

c'est le cours du sang et des rivières
qui fait nuire l'amour parmi les gens,
la verdure au creux des champs,

la vie à la planète dépend de l'amour
et l'amour c'est ce qui nous fait (re)naitre.


Bonne nouvelle année!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

poema-chá

chá de jasmim, chá de gengibre,
de maçã ou de canela
sabores da terra e do deserto
chá de ventura, chá de cansaço,
chá de sossego, chá de fascínio,
chá de flanela e lúcia-lima
ou camomila, ou tília e segurelha,
chá de pausa e de memórias minhas
num chá de ervas maduras,
em palavras que largam sua alma derradeira

quente e aconchegante
este é um poema-chá de coisas verdadeiras
como a paz de uma noite após a chuva
como o retorno a casa após a ausência
como o afago macio do sono
quando o chá nos embriaga de sabores
e enfim nos desprendemos para os sonhos
de jasmim, de gengibre ou de cidreira
consoante a raiz do que já fomos

domingo, 26 de dezembro de 2010

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

às vezes escrevo cartas nas ondas que penso à deriva da tarde ou do momento, quando este for. não as registo, porque perderiam tudo que as suporta e pertence ao pensamento em estado puro, o sal que autentica as palavras.  gostava de te escrever mais cartas destas, algumas gostava de as armar, conexas e  coerentes, para se afirmarem mar adentro ao teu encontro. mas entre o momento das palavras e o momento do registo algo se processa que as despe do brilho original e as torna carentes e pias, frágeis, na grandiosidade visada. ficam apenas estes verbos ergativos, sem mais saída que a de registarem ocorrências. Digo que ando, sorrio, corro, passeio, até posso voar e dizer da curvatura do céu, mas não há inacusatividade nas frases que passam ao papel. As que me vêm à boca sem passar da garganta trazem argumentos externos bem claros, um objecto directo, ou indirecto e sempre um sujeito, um nominativo que pressupõe um reconhecimento. eu. e tu. no dia em que conseguir ser como penso, saberei escrever cartas de amor. não raro me sucede também absorver para dentro os adjectivos, os diminutivos e as frases expressivas que se formam no meu pensamento. engulo-as. assentam-me e no estômago, como uma bebida quente, gim, ou rum, que confortam e roem, como tantas vezes o silêncio.

domingo, 12 de dezembro de 2010



Um toque de Natal... 


(seguir o link e ouvir) 

 

sábado, 11 de dezembro de 2010

arruma, aspira, lava, esfrega, encera, limpa o pó e passa a ferro e então corta as batatas, as cenouras e a abóbora, o feijão verde e a beterraba, afaga os bifes, corta os alhos e põe ao lume e faz salada e mais esparguete e maçã assada e depois arruma, lava, limpa, muda os lençóis, faz uma cama, outra, e depois outra e outra ainda e lava a roupa e estende a roupa e quando vai para dobrar as meias, num aconchego de sofá e aquecedor, frente a um filme qualquer, (hummm, a casa iluminada pelas velas, o odor da limpeza e da cera,  o paraíso à sua espera, talvez cabeceie numa dança etérea pelo tecto do mundo), eis que lhe declina o dia na cara, e o jantar à sua espera e o banho enfim, enquanto a pizza assa e só depois então, já noite cheia, procura o que o dia lhe roubou e percebe que ainda não acabou. nunca acaba. talvez um dia possa parar para pensar, ou para escrever, ou para dormir, ou para sonhar... tudo que for, será certamente um dia e é a antecipação do que pode vir a ser que viabiliza o que agora é. deita-se e ler um livro, mas a frase fica a moer na cabeça e é lida uma e outra vez,  sem conseguir avançar, porque o cérebro algures desperto avisa que não houve entendimento. quando o livro cai, solta-se enfim na extensa fidalguia da noite e não faz nada, nada, nada, a não ser sonhar que o tal dia já chegou.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Sometimes so lost and sad and my arms so heavy and weak sometimes in despair, sometimes with joy and hope in my lips half world on my shoulders, and the sense of stronghold in spite of everything that bothers me.

I walk along the walls as they become useless, the walls that surrender us, for I can see through the bricks and I can feel the inmost part inside you, as I gently and  so softly stopped the world around me and every little thing is vanished and, oh, there's a sweet fire burning and spreading my senses in the domains of past and future, the time to be. And we shall be the dream that lives upon reality.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010


o céu é uma barra de cinza no ponto onde a extensão da língua perde palavras para o dizer. tão vasto lume assim em cinza é como o mar entre a aluvião da onda e o desmaio na areia. entre as armas alongadas com balas pelo meio espreita o tempo de cada ser, tempo quase a explodir como num ventre. os prédios recortam a vida, tornam-na minúscula, praticamente fixa num ponto, dentro de um orifício sem fundo. gosto de sair assim para sentir onde pulsa o segredo dos outros, a ínfima parte das suas vidas, cujo presente desce rapidamente as escadas até ser tarde. deixei de me olhar na humidade dos espelhos. deve  ser assim que se começa a fazer parte do tempo, com um lugar cativo no esquecimento.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

domingo, 5 de dezembro de 2010

detenho-me no vento, no seu assobio agudo, nesta intensa agitação de persianas,  detenho-me nas ruas desertas, na chuva a castigar os vidros, detenho-me no lamento de um piano, solitário eco de mãos persistentes, detenho-me na nostalgia que escorre deste tempo agreste e sinto-me bem no meu refúgio, abrigada, protegida, num casulo suave e quente. sou uma escrevinhadora, relatora de sinais e de presságios que vejo nos sons da natureza, a chuva e o vento, ou nas nuvens, a claridade do céu. e o que hoje vejo é o ferrão aguçado que o mundo crava na realidade dos seres. os tempos cobrem-nos de tristeza, as ruas abrigam quem subitamente desaguou na penúria, os beirais são estreitos, a chuva, o frio, a humilhação, a solidão e a exclusão escavam nos olhos sombras profundas. e eu vejo que as nuvens se carregam, que o temporal se arma, e que o coração diminui, egoísta, impotente, neste canto que resiste, ainda com um sorriso, aquecido por uma espécie de gratidão, face ao que tenho. ainda há esperança, vejo-o. tardará o sol que nos aquece os ossos, por dentro, mas virá. vejo-o nos gestos mais simples, com os quais a humanidade ainda me surpreende. os vizinhos, as crianças, os gestos educados, as palavras adequadas.  há uma organização que resiste. somos muitos. apesar de diminuir a generosa vontade de dar tudo, tudo, mais do que a mão, mais do que a vida, mais do que o sorriso, a esmola, a pele, é preciso continuar a viver e a ver claramente o mundo dos outros.